Há algum tempo vi, no documentário Chico: Artista Brasileiro, uma opinião do próprio Chico Buarque não especificamente sobre a música sertaneja universitária, mas sobre os sucessos atuais e o que ele falou me chamou muito a atenção. Disse ele que o que toca hoje é, na verdade, a música que realmente corresponde ao gosto musical do brasileiro. E completou que a bossa-nova e a MPB são gêneros que foram impostos pela elite brasileira e que hoje o povo não responde mais a imposições culturais de uma minoria rica.
Hoje as classes estão mais amplamente representadas nas mídias e aquela MPB que antes dominava o mercado musical, deixou de ser o padrão e acabou perdendo a liderança.
Minha impressão é que realmente existe uma maior sintonia entre os gostos musicais dos diferentes grupos sociais e a mídia, além de uma maior possibilidade de acesso a diferentes nichos musicais.
E que, portanto, existe uma oferta mais ampla de possibilidades, principalmente com a era digital. No entanto, questões como representação e imposição cultural ainda são problemáticas.
Representação, imposição, articulação
De qualquer forma, existe uma aura em torno da geração do Chico. Uma geração que viu Tom e Vinícius, Gil e Caetano, Milton e Brant. Que viu a Bossa Nova nascer, o samba ressurgir. Que lutou contra a ditadura, que viu a Tropicália e o Clube da Esquina.
Imagem conquistada não apenas pela música que produziu, pelo momento histórico que viveu e como interagiu e transformou sua realidade sócio-política, mas também pelo modo específico como articulou a interação entre o gosto musical de grupos privilegiados e a produção cultural popular.
No entanto, o gosto musical das classes médias altas urbanas do Rio e de São Paulo e sua forma específica de interagir com a música raiz não formam mais a corrente principal do mercado musical brasileiro, tendo dado lugar a diversas subculturas – aqui incluídas as diversas formas de música rural – e perdido espaço para um padrão pop de mercado.
Na capital. E no interior?
Outro que vem defendendo um olhar menos preconceituoso sobre o chamado sertanejo universitário é o funcionário da música, Renato Teixeira.
Representante da música sertaneja raiz ou, como prefere, da música caipira, o compositor, incluído na lista dos grandes nomes da MPB nos anos 1970 e 1980, se junta ao coro ao falar sobre o atual mercado de música sertaneja:
“Uma das grandes qualidades da música nos últimos tempos foi o fim do preconceito. Você pode gostar e não gostar de música. Mas falar que tem música ruim, isso não existe. Esse é o grande barato da música”.
Jornal O Tempo
O que as pessoas entendem por música ruim quase nunca tem a ver com qualidade. Se é que se pode falar em qualidade em música, como bem lembra Renato.
Atribuir a um determinado estilo musical a etiqueta de ruim ou bom me soa mais como uma forma de incluir e excluir pessoas em grupos. Música é usada para criar tribos. A música do meu grupo, a música do meu tempo, do meu país, da minha região, da minha turma…
No entanto, para Renato, não ter preconceito não significa não perceber diferenças:
“Embora eu não ache que exista música ruim, a gente não se identifica com essas canções que estão na moda agora.”
Jornal Correio do Povo
Números do Sertanejo Universitário
Por falar em moda, a extinta Bilboard Brasil costumava fazer listas anuais das mais tocadas nas rádios brasileiras. Acho que atualmente ninguém mais faz isso no Brasil! Mas se a gente der uma espiada nas listas Top 50 Brasil do Spotify e 50 Mais Tocadas Brasil do Deezer, por exemplo, vai ver que o cenário mudou um pouco de alguns anos para cá: as músicas sertanejas em 2020 perderam algum espaço, mas não totalmente.
Em 2015 e 2016, segundo a BilboardA publicação original da Bilboard Brasil não está mais disponível na rede. Os dados apresentados aqui vêm de anotações pessoais feitas na época., as primeiras não sertanejas da lista ocupavam a 16ª e a 20ª posições.
Já na playlist do Spotify deste ano, a barreira sertaneja não é tão intransponível. Das 10 primeiras canções, 7 são sertanejos universitários. Duas canções norteamericanas e um pop nacional furam o bloqueio.
No Deezer a situação é semelhante. São 5 de 10, mas se considerarmos as duas canções da Pisadinha cearense como representantes de músicas de origem não urbana, o número passa a 7 de 10.
E as meninas sertanejas?
Um outro dado interessante em relação aos números da Bilboard e os atuais é a presença feminina, impulsionada também pelo fenômeno sertanejo universitário.
Em 2015, a primeira mulher na lista era Anitta, com Deixa ele sofrer, na posição 51. Em 2016, as mulheres estavam na 2ª, 5ª, 8ª e 18ª posições antes da primeira não sertaneja. Sempre representadas pelas caipiras. Na lista do Spotify deste ano a tendência se mantém.
Depois da décima posição o que se vê é uma lista com não poucos representantes de outros ritmos brasileiros, mas com predomínio claro de nomes conjugados por um orgulhoso e sintomático ‘&’ comercial.
Dava a impressão de que a Bilboard produzia listas de sertanejas mais tocadas e não das músicas brasileira mais tocadas. Essa situação mudou um pouco, mas a hegemonia sertaneja persiste.
Oncotô? Poncovô?
As formas de interação entre interior e capital sempre mostram a cara do Brasil e os números acima não são o único exemplo. Em uma sala de aula, em um curso de pós-graduação, faz algum tempo, um colega fez uma referência à sua cidade natal no interior norte do Rio de Janeiro. Alguém desdenhou de seu sotaque e origem, comentário que o deixou incomodado.
Sua resposta foi curiosa: “as cidades do interior bem que podiam deixar o Rio e se juntar ao estado de Minas”. Lembro que também ri da piada da qual não me lembro. Foi inevitável. Mas seu comentário me tirou do lugar comum.
Os discursos sobre a gente do interior giram em torno de algumas imagens que nem sempre são positivas, quase sempre são racializadas e em pelo menos um ponto específico, contraditórias.
Se, por um lado, os discursos culturais em torno do caboclo, do caipira ou do matuto em geral projetam uma imagem de ingenuidade, ignorância e até de pouca inteligência, por outro, sobre esse mesmo indivíduo recai uma estranha responsabilidade. A de preservação de uma reserva cultural, uma espécie de patrimônio nacional em que todo cozinheiro põe a colher, mas que necessita de um guardião.
“A Música sertaneja hoje nem parece música brasileira”
A produção cultural das grandes capitais pode receber a influência que for, da cultura clássica ou da cultura pop, do rock ou do jazz. Mas ai do caboco que toque numa guitarra! A relação entre o que se considera atrasado e moderno é um dilema brasileiro antigo. O atrasado, o moderno e a reserva.
É curiosa a conexão entre essas três imagens. Ao mesmo tempo que atribui atraso ao sertanejo (mas não apenas a ele) e imagina o moderno sem ele vindo do exterior, espera que ele cumpra uma missão, ou seja, preservar alguma coisa que se perdeu ou está por se perder pela força mesma da modernização.
O dilema do brasileiro matuto: olhar para fora e para dentro. Mas isso é coisa antiga, pergunta ao Caetano. E também são formas de incluir/excluir.
Afeto e vínculo
Não sei definir qualidade em música. Uma abordagem alternativa colocaria em discussão as diferentes maneiras com que a música afeta o ouvinte e os vínculos que cria.
Não apenas os vínculos sociais que mencionei antes, mas também a forma como ideias, emoções e significados se conectam mutuamente e assim afetam o ouvinte. Afeto e vínculos. Claro, essa palavra tem um outro significado mais comum. Mas afeto como afeição também pode até ser um dos afetos a que me refiro aqui.
De todo modo, acho mesmo que bom e ruim, quando se fala de música, sequer deveriam ser usados. Definir o que é bom ou ruim é sempre complicado.
Não custa lembrar que o samba ou qualquer batucada de preto foram-são vistos como o que há de mais primitivo na formação da sociedade brasileira. Mas todo mundo sabe que quando toca, ninguém fica parado. E como fica bonitinho com cara de Zona Sul!
O fato é que bom e ruim são formas de afirmação de identidade, inclusão/exclusão, estratégias de mapeamento, ferramentas para fazer e desfazer grupos. Não diz nada a respeito das características da música em si.
A noção de bom/ruim, inclusive, muda em relação a um mesmo estilo, não passa de um sintoma do seu tempo, um reflexo do espírito da época. Melhor seria dizer eu não me vinculo a esse grupo ou essa música me afeta dessa ou daquela maneira. Ou (não) me identifico, como disse Renato.
De que forma a música do caboclo afeta o mercado e vice-versa?
Lembrando que as pessoas fazem parte do mercado, claro. Minha impressão a respeito do mercado musical brasileiro, pelo menos do pós-ditadura para cá, é de que existe uma certa tendência um tanto obsessiva de gerar ilhas de unanimidade.
O rock nacional nos anos 80 e o Axé na década de 90 são exemplos disso. Acho que os anos 2000 foram um pouco mais heterogêneos, o que não anula completamente essa tendência, já que não se trata de um fenômeno absoluto. Mesmo porque, nessa época se consolidou uma guinada do mercadão em direção ao pop norte americano. Mas nos anos 10, como se viu, o padrão se manteve com força.
Até que ponto essa tendência se desconecta da música brasileira anterior?
Ao longo do século 20, a música brasileira buscou encontrar diversos caminhos que a levassem a articular o interior legítimo, genuinamente brasileiro ao exterior invasor e ao mesmo tempo com o gosto das elites. Me lembro dos comentários na década de 90 quando diziam que “hoje as rádios brasileiras tocam música brasileira”, em resposta aos números da década anterior, talvez.
Isso foi o que as apropriações das elites Modernista na década de 20 e Bossanovista nos 60 fizeram. E claro que não foram os únicos. Sambistas, tropicalistas, Gonzagões, Caipiras e muitos outros também fizeram.
A capacidade de costurar essas articulações é que define o maior ou menor sucesso do artista. E a necessidade de articulá-las evidencia a forma de pensar das elites. Paradigma que é imposto, como lembrou Chico, de baixo para cima.
Daí vem uma outra pergunta que eu também não sei responder. O que é música genuinamente brasileira. Na verdade, talvez existam várias respostas a essa pergunta. E o número de respostas talvez seja igual ao número de vezes que alguém fez essa pergunta e em seguida compôs algo novo.
No entanto, essa definição deve passar pela própria necessidade dessa busca e pelos fatores externos que geram essa necessidade.
E o mercadão, como interage com a raiz?
O modo de operar do mercado e a necessidade de interagir com suas demandas mudou muito do Brasil pós-abolição do início do século 20 para o Brasil neoliberal do pós-ditadura.
Existe uma estratégia de mercado nessa coisa das ilhas, claro. Mas não apenas de mercado. Me parece que existe uma tendência a promover uma desconexão do público com essas buscas, com esse paradigma de olhar para dentro. Porque quando a gente olha para dentro, o que a gente vê é a música cabocla, negra, índia. É o caipira, o paraíba, o crioulo.
Será que existe alguém dentro das grandes empresas de mídia controlando isso? Um departamento de exclusão social. Acho difícil. Por outro lado é difícil pensar que essas decisões que sempre terminam privilegiando o mesmo lado sejam obra do acaso. Pode ser que esses padrões se repitam apenas por hábito, sem intencionalidade. Eu escrevi sobre isso aqui.
Ou talvez as duas coisas sejam verdade ao mesmo tempo. Em todo caso, o sentimento de inconformidade das elites com essa gente e suas músicas é uma realidade, salvo exceções, claro. O fato de os donos da mídia terem escolhido o Rock n’ Roll como sua primeira ilha de unanimidade, nosso primeiro mergulho nesse novo paradigma, é um indício forte disso. E a atual a tendência pop é também.
Preciso dizer que não tenho problema algum com o rock ou qualquer outro estilo musical? É apenas uma reflexão sobre as relações de poder que nos conduziram àquela configuração de mercado. Para tentar entender o que ocorre hoje.
Voltando ao artista e à arte…
O Sertanejo dos anos 2010 e seu ‘&’ comercial tem vínculo com uma longa tradição de música de diversão ao ar livre em massa, ou seja, música pra pular brasileira. Quem é que não gosta? Não dá para rejeitá-lo sem rejeitar também uma longa série de outros estilos que, não apenas nos carnavais, vem fazendo a cabeça do brasileiro há séculos. Mas se conecta também com o caboclo e sua música caipira. Não consigo ver problema nisso.
2 coisas porém…
…me parecem problemáticas. E nenhuma delas tem a ver com a música sertaneja em si.
A primeira é que essa tendência a formar ilhas tende a colocar todos os outros estilos à margem ou quase fora da margem do mercadão musical. Mesmo estilos que têm grande apelo comercial acabam por ficar um pouco rejeitados, o que se dirá de estilos que são por sua natureza menos massificantes?
Isso não é justo com esses artistas e seus públicos e não é bom para a cultura, nem como mercado, nem como patrimônio. Com isso, a riqueza dos ritmos brasileiros vai se dissolvendo na corrente do pop. O que tem muito a ver com a estrutura excessivamente centralizada das mídias no Brasil. Oligarquia Global.
A segunda tem igualmente relação com a forma como o mercado age. Não se pode negar a identidade das músicas que fazem sucesso hoje. Aquele projeto de substituição da música brasileira pelo rock não é mais tão evidente, afinal Axé, Pagode e Sertanejo são música brasileira.
Porém, dá uma guglada por imagens de cantores sertanejos universitários mais famosos e tenta encontrar caboclos e negros. Lá no final da lista, talvez. Ou ainda, faz o mesmo com cantores de axé mais famosos.
Uma vez mais, nada contra esses ou quaisquer outros artistas. Ao contrário, tudo a favor. Que continuem cantando e alegrando o mundo! Meu objetivo é apenas remexer e tirar o pó de coisas que muitas vezes ficam esquecidas. Sem nostalgia, mas com o olhar atento. Porque olhar para dentro é tão importante quanto olhar para fora.
No mais…
Tem ainda uma terceira questão que me incomoda e que tem tem relação com com a perda do sentido do artesanal na música. Aquela coisa do artista que entalha cuidadosamente cada nota. Característica que fica bastante rejeitada dentro do paradigma da música de massa.
Mas, no final das contas, tem uma coisa muito positiva nisso tudo. Mesmo diante de tal cenário no Brasil, a principal tendência na era digital é um predomínio muito forte da diversidade, possibilitado pelas novas mídias, apesar e em resposta à tendência homogeneizadora do mercado.
Diversidade que tem possibilitado uma efervescência muito interessante naquelas áreas próximas à margem e efetivamente à margem do mercadão. Portanto, se você não está feliz com o que toca nas rádios, vai procurar sua tribo.
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