O Rio continua lindo, certo?

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Umas semanas atrás assistimos os últimos episódios da guerra diária no Rio de Janeiro. Imagina se toda essa violência começasse de repente a ameaçar nossas casas e matar nossos vizinhos e talvez até nossos filhos! Essa poderia ser a chamada de qualquer noticiário carioca dos últimos 60 anos, pelo menos. Menos de um noticiário atual!

Quando  se fala do Rio, uma das primeiras ideias que vêm à mente é paisagem. São tantas músicas, novelas, livros, poemas, conversas, pensamentos… todos têm em comum uma mesma preocupação: o Rio de Janeiro continua lindo? Mas como feio não é bonito, se as belezas naturais da cidade inspiraram tantas histórias, as construções sociais, nem sempre tão belas,  também serviram de matéria prima para produzir beleza. Musas inspiradoras sempre, agraciadas ou não pelos padrões de beleza, as paisagens naturais, as paisagens construídas e as paisagens sociais são os tijolos que integram a imagem socialmente construída do Rio. Purgatório da beleza e do caos, paisagens que trazem contradição em sua origem e essência ao mito da cidade maravilhosa.

Contradições que ficam, naturalmente, ofuscadas pelas belezas naturais e pela gente extrovertida e pelos bares, festas, carnavais… Ficam até bonitas as imagens das favelas do Rio! Só depende do ângulo. E, se a gente consegue colocar um pôr do sol ao fundo, ou as ondas do mar… Acontece que nada acontece naturalmente, tudo é construção. A naturalidade com que a beleza puxa os olhares e a impossibilidade de olhar em duas direções ao mesmo tempo é apenas o truque dos cérebros que conduzem os corações a enxergar apenas o que não machuca. Negação que leva, com o tempo, a uma espécie de cegueira ou invisibilidade. Por meio do esquecimento, da vista grossa, da tendência à negação do feio e à preferência pelo bonito, perdemos a capacidade de enxergar o que está gritando na nossa frente. Invisibilizamos o absurdo. Transformamos em paisagem o que na verdade é construção, atuação, responsabilidade.

Mas sobre que mito estamos falando? Esse vídeo é sobre a atual guerra entre milicianos e traficantes na Zona Oeste. A Zona Oeste é grande. Para quem é de fora, é a maior região do Rio. Vizinha da Zona Norte e da Zona Sul, as fronteiras dos bairros da Zona Oeste do Rio de Janeiro se estendem de São Conrado a Madureira, Rocha Miranda e Anchieta. A Barra é Zona Oeste, um dos bairros mais caros do Rio. O Pau da Fome também. Esse ninguém conhece. Mas a guerra não é na Barra. É em lugares que têm nomes menos reconhecíveis para quem é de fora que a coisa toda acontece. Muzema, Gardênia Azul e Rio das Pedras; Campinho, Chacrinha, Pombal… Outros já mais famosos, como a Cidade de Deus.  Como assim? Qual é a contribuição da Gardênia Azul  com as míticas belezas cariocas?

Uma cidade sitiada

A minha pergunta é como o Rio se tornou essa cidade sitiada. As favelas são cidades sitiadas desde sempre. Mas o Rio, como ficou assim? Curioso isso! Já faz tempo que o condomínio fechado virou paradigma de moradia e segurança. Brincar livremente pelas ruas é impensável e virou meme de tiozão. O que está acontecendo na Zona Oeste nas últimas semanas e meses já virou o padrão de vida carioca faz tempo. Em todas as partes, em todas as regiões. Quase ninguém mais vive no Rio sem abaixar a cabeça para traficante ou pagar mensalidade para miliciano. Zona Sul e Barra talvez sejam exceções. Estão virando um imenso condomínio fechado com área de lazer e piscina. Só falta começar a erguer os muros. Mas nem sempre foi assim. O Rio de Janeiro já foi lindo. Crianças  na rua, natureza, praias, harmonia entre as pessoas, futebol de várzea, vôlei de praia… Maravilha de cenário! O sonho carioca. Aquela minha pergunta ainda faz sentido para você?

Quem vem governando essa maravilha?

Nos últimos 59 anos, ou seja, de 64 para cá, estado e município do Rio – além do Estado da Guanabara – passaram, grosso modo, 50 anos sob o controle de agremiações como ARENA, UDN, PFL, PTB, DEM, MDB, PSDB, PSC, PL e de figuras obscuras do PDT e do PSB  que depois acabaram por migrar para algum dos partidos acima. Dos 9 anos que nos restaram, foram 8 anos administrados pelo PDT raiz – entenda-se Brizola – com um interlúdio de 9 meses com o PT da Benedita. Enfim, apesar da divisão ser grosseira, tenho certeza de que reflete, em linhas gerais, a realidade política fluminense e carioca. E nem vou me meter a falar do que acontecia antes  de 64.

A atuação do Estado nas favelas se deu sempre por meio de políticas de eliminação. A guerra ao narcotráfico é só um exemplo. O Estado vem, desde sempre, atuando nessas áreas de forma letal, como uma política de combate às pessoas, e não aos problemas. É claro que ninguém fala nesses termos, a notícia nos jornalões vai trazer sempre referências a uma guerra cujo inimigo é o tráfico. Tá, no passado eram mais explícitos, chamavam combate à vagabundagem, à capoeira, à macumba, ao samba… A polícia  não arromba porta de traficante da Zona Sul. A polícia não mata o vizinho inocente dele.

A única exceção a esse tipo de política foram justamente os poucos anos de brizolismo. Enquanto esteve à frente do Estado do Rio, Brizola mudou as práticas policiais nas favelas. Não permitia que a polícia subisse o morro disparando tiros, matando famílias e crianças inocentes, atirando em qualquer um que parecesse suspeito, de acordo com seus próprios e questionáveis critérios. Não permitiu que invadissem lares, garantindo assim a inviolabilidade da residência. Direitos básicos garantidos a qualquer pessoa que possa ser reconhecida como cidadã.

Não  é preciso dizer que esta política sofreu forte resistência  das elites; das mídias, que são seu porta voz; e, claro, da polícia. Foi acusada de servir para proteger bandido, sofreu uma campanha feroz de desconstrução de sua real imagem e objetivos. Mas não se trata apenas de não meter mais o pé na porta de favelado. As mudanças propostas na forma como a polícia intercedia nas comunidades veio acompanhada de um grande projeto de criação de escolas nas regiões próximas a elas, os CIEPs, rebatizados Brizolões pela mídia. Em seu projeto original, pretendiam ser escolas em tempo integral que manteriam crianças   ocupadas e protegidas. E com seu futuro garantido pela educação. O sonho carioca!

Tampouco é necessário dizer que estes projetos foram abolidos com ansiedade pelos governos que se sucederam. Imagina, colégio integral para criança de favela! Os resultados estão aí. Deixa aí nos comentários: como vocês acham que estaríamos hoje, 40 anos depois, se tal projeto tivesse sido continuado e aprimorado? Um fato curioso. Certo como fumaça para fogo. Sintomático como febre para virose: dois dos mais famosos massacres cariocas ocorreram bem no final da segunda gestão brizolista: a chacina da Candelária e o massacre de Vigário Geral. Explosões letais de violência realizadas por agentes do Estado, ainda que na contramão da política do então governo. Explodem, talvez, como o alívio de um desejo reprimido. Uma represa que não consegue mais se manter de pé e se arrebenta. Um pequeno aperitivo e o prenúncio de que os cães raivosos e famintos vão estar à solta de novo. Mas isso é tema talvez para um outro vídeo.

Não estamos todos nós, cidadãos cariocas, reféns de grupos que vêm controlando mais e mais espaços a ponto de sobrar apenas (e talvez) a Zona Sul? Não estamos sob ameaça de morte velada ou escancarada por parte desses grupos? Nossas casas não estão sob ameaça de invasão, nossos filhos sob ameaça de morte? Faz sentido sim, estamos sofrendo com os mesmos problemas dos favelados. O Condomínio Cidade Maravilhosa está ficando cada vez mais apertado e diria até oprimido. Em redor de si cresce a cada dia mais uma área sitiada. E ao mesmo tempo fica mais difícil sustentar a imagem maravilhosa da cidade. Entre fantasia e realidade, as pessoas tendem sempre a escolher a fantasia. Desde que isso signifique menos sofrimento. Só que isso que cresce em redor dos muros dos nossos castelos de areia tem um nome: realidade. Da minha parte, ainda me questiono se minha pergunta faz sentido.

A experiência

Vi uma experiência social na internet recentemente. Colocaram uma menina negra sozinha em uma praça pública. Bem-vestida, arrumadinha, penteada. É um lugar movimentado, tipo centro de alguma cidade grande. Ninguém para para saber o que está acontecendo com aquela criança. Trocam a menina negra por uma loira e, aos olhos dos transeuntes, a situação imediatamente vira o que ela de fato é, ou seja, um absurdo. Uma criança sozinha perdida no centro de uma grande cidade é uma situação anormal, merece cuidado. As pessoas são capazes de enxergar aquilo como o absurdo que é. Várias pessoas param para conversar com a segunda menina… Tem algo errado com isso. O que há de tão feio com aquela menina que a torna invisível ? É uma criança!

Só se pode dizer que hoje o Rio está virando uma cidade sitiada porque há muito que se nega a cidadania de milhares de não-cidadãos. O Rio só passa a ser uma cidade sitiada quando seus cidadãos estão sob ameaça. Favelas são regiões sitiadas e isso não converteu o mítico Rio do passado em uma cidade sitiada porque não-cidadãos não contam como critério. Sequer são enxergados!

Se hoje a violência começasse a ameaçar nossas casas e matar nossos vizinhos e talvez até nossos filhos, para quem isso seria uma notícia atual? Acontece que nossos filhos, nossos vizinhos e os filhos de nossos vizinhos estão sob ameaça letal há séculos. O Rio não se tornou essa cidade sitiada. O rio sempre foi essa cidade. Madureira, Gardênia Azul, Cidade de Deus… são parte da cidade. Ainda que negadas, não se pode, por lógica, dizer que a cidade do Rio um dia não foi uma cidade sitiada, uma vez que muitas de suas localidades, que provavelmente abriga a maior parte de sua população estiveram desde sempre sitiadas. A única coisa que em algum passado mítico gerou essa feliz sensação de que o Rio foi um paraíso é a naturalização da não cidadania. O espaço dos cidadãos algum dia não esteve sitiado. Talvez depois das reformas higienizadoras de Pereira Passos nos idos de 1900. Mas os espaços daqueles invisíveis, os não cidadãos, dentro dos muros da mesma cidade, sempre estiveram. O Rio tem estado de sítio desde sempre. E a prova mais cabal de que essas pessoas são não-cidadãos invisíveis, ou seja, a negação do que está gritando na sua frente, é a base da manutenção de um mito, o mito de uma cidade maravilhosa.

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