Cangaço Novo e o mito de resistência do oprimido

Existem tipos de bandidos? Existe bandido bom e bandido mau? Lampião, Bandido da Luz Vermelha, Charles Anjo 45, Robin Hood, Casal Nardoni… são todos iguais? Bandido bom é bandido morto ou bandido bom é… aquele que roubou seu coração?

A Amazon Prime lançou este ano a série Cangaço Novo. Sucesso de público em nível global, segundo o site Omelete, e também de crítica, com notas 8,5/10 no IMDb e 4,5/5 no Cine Pop, a série explora o tema do bom bandido e retoma a boa e velha temática do cangaço.

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Inspirada em crimes que vêm acontecendo principalmente no interior em diversas regiões do Brasil e que ficaram conhecidos como o novo cangaço, e tendo como paisagem os Sertões do Ceará, nosso herói retorna de São Paulo, onde viveu desde criança, para a fictícia Cratará em busca de uma possível herança que pode salvar a vida de seu pai adotivo doente. Lá, acaba descobrindo ser filho de um líder popular que se envolveu em disputas com poderes locais e terminou morto.

Assumir a posição como uma nova liderança, além de ser um projeto que não estava em seus planos, vai lhe custar muitos percalços. Mas a vida sem uns percalços para tropeçar não tem a menor graça. Principalmente nas séries de TV. Mas não se preocupem, não vou estragar o final para quem ainda não assistiu.

Água, terra e bala

A trama de Cangaço Novo é sobre disputa por água e terra. Essa disputa não é novidade para ninguém. O grande paradigma que vem construindo a sociedade brasileira ao longo dos séculos gira em torno de quem possui terras e recursos e quem fica de fora da festa, seja por não possuir tais recursos, seja por simplesmente não ter direito formal a eles, como no passado. O que no final representa duas estratégias para alcançar o mesmo fim. O passado sempre deixa sua herança. Poder nas mãos de poucos e marginalização social e geográfica para muitos. E segue cumprindo a finalidade de manter os herdeiros daqueles que não tinham direitos à margem da sociedade. Quando chove tem fartura, mas ai de quem sonhar que água e terra são para todos.

A própria origem dos grupos cangaceiros, ainda no Brasil Colônia, gira em torno dessa dinâmica. Resumindo muito grosso modo, as regiões litorâneas do Nordeste são férteis o ano inteiro. Se caminhamos em direção ao interior, vamos encontrar a Zona da Mata, também pouco afetada pelo clima do semiárido. Já a Caatinga, como sabemos, passa por períodos de seca e chuva.

Em tempos férteis, os coronés mantinham grupos de jagunços que cuidavam de todo tipo de serviço, da pecuária a assuntos de ordem política ou em disputas com outros latifundiários locais. Com seus exércitos particulares, controlavam as suas áreas com poder quase absoluto. Em tempos de vacas magras, quando a chuva minguava, esses grupos eram dispensados passando a vagar pelo sertão, sem vinculação com ninguém a não ser seus próprios líderes, atrás de formas nem sempre justas de sobrevivência. Com o tempo alguns desses grupos se tornaram autônomos, independe da época do ano, mas sempre articulados com os fazendeiros.

Além da associação com coronés, esses grupos também faziam parcerias de proteção mútua com camponeses, os chamados coiteiros. Não era exatamente a imagem que se tem de um Robin Hood, mas ambos lados tiravam algum proveito dessa parceria. Em Cangaço Novo, Ubaldo tem também um quê de protetor dos fracos e oprimidos, mas, na verdade, a identificação que o camponês tinha com os antigos cangaceiros, assim como a atuação de Ubaldo – e antes dele, com seu pai – iam muito além de caridade.

A trama de Cangaço Novo tem muito a ver com a dos antigos cangaceiros, mas traz algumas diferenças cruciais. Na verdade, todos os problemas de Amaro e Ubaldo Vaqueiro começam com sua desvinculação dos grupos de poder dominantes. O coronelismo ainda é muito forte em muitas localidades e eles poderiam apenas se vincular a esses grupos e garantir sua sobrevivência, mas a longa experiência das lutas de minorias no último século traz uma nova consciência a essa luta.

Eles não andam sozinhos, têm seus aliados, mas pela sua dependência de água e dinheiro fica claro que os grupos políticos que os apoiam não são bem-vistos pelos verdadeiros coronés. E não ser bem-visto significa, digamos, ser convidado a se retirar do jogo sempre que surge a oportunidade de fazer esse pedido. Sem acesso garantido a água, com suas terras no prego e na mira da milícia do Senador Maleiro, que métodos de resistência poderiam ser considerados lícitos? As lendas e a realidade do antigo cangaço passam longe de ser contos pacifistas. E a ficção de Cangaço Novo também. Então por que as pessoas se identificam com esses ícones de violência?

A chave liga-desliga

A associação do cangaço com o que se conhece hoje como as Milícias é na verdade quase automática. Braços informais do Estado atuando com autonomia e de forma ilegal, com o apoio do Estado. E talvez o Estado miliciano de hoje seja herdeiro dessas práticas que vêm se adaptando, ao longo dos séculos, aos tempos modernos. Mas na época do cangaço as coisas eram diferentes.

A presença do Estado era pífia. A lei eram os próprios coronés e a ordem que imperava era a do controle de corpos não brancos que, se ainda hoje não têm garantidos seus direitos, nessa época o direito inexistia. Sob os olhos de hoje, os cangaceiros seriam condenados, pelo menos pela parte da sociedade que defende os direitos humanos como princípio. Mas, efetivamente, controle, punição, castigo e assassinato de corpos negros, indígenas ou caboclos não eram por si só um crime na época.

E a conexão do velho cangaço com a série também é clara: disputa entre classes, sertão, liderança popular. A estética é contemporânea, você não vai ver cangaceiro de chapéu de couro e bornal. Mas a paisagem e a temática recebem de herança a vasta literatura cangaceira. Muitos vão dizer, sobre Lampião, que, apesar da magnitude que os mitos que envolvem sua imagem alcançaram, ele não era exatamente um líder popular. Se, por um lado, são conhecidos relatos de que ele proibia – e mesmo punia – seus cangaceiros por maltratar crianças, mulheres e idosos, por outro, sabe-se também que essa proibição não se aplicava quando era o caso era de seu interesse.

São conhecidos relatos de vinganças por traição, por exemplo, onde parentes sofriam as consequências de se desafiar o Rei do Sertão no lugar daquele que cometeu o desacato, caso este não fosse encontrado. Cangaço e milícia, cangaço liderança popular. Ubaldo, em Cangaço Novo, assume uma posição menos ambígua como um real articulador de uma luta por justiça. Atualizando o mito do bandido-herói com a consciência social inexistente até a época do Capitão Virgulino.

O que tornava os cangaceiros bandidos-heróis, então? Qual a razão dessa ambiguidade em relação a figura de Virgulino? Que condição virava a chave que liga e desliga o status de malfeitores? Essa resposta depende das condições econômicas e climáticas de cada época, como vimos, mas também do ponto de vista de quem conta a história. Estar associado com o latifúndio e buscar não apenas a proteção, mas a realização de interesses comuns era comum até os últimos momentos do Cangaço. Lampião e Corisco morreram em fazendas de aliados.

Seguir associado, ainda que autonomamente, ao poder é garantia de proteção, tanto física quanto moral. Sob os olhos do poder, esses grupos eram aliados. Por que, então, usar o poder que tinham para eliminá-los? Enquanto eram úteis, foram poupados, mas quando foi do interesse do Estado, já na era de Getúlio Vargas, foram abatidos como gado, assim como Amaro, pai de Ubaldo. E justamente aí entra o outro lado da questão. Esses grupos não são parte da elite. Não são cowboys de faroeste e não têm os olhos verdes do Clint Eastwood. Não passavam de intermediários da manutenção do poder. E são descartáveis sempre que o poder não precisar mais deles.

O camponês pobre, por sua vez, se via naqueles homens negros e caboclos que realizavam façanhas fabulosas e se equiparavam à imagem dos coronés. Essa é a segunda chave que liga o status de herói. A identificação das pessoas racializadas com as proezas do mito de Lampião e seus antecessores que as fazia preencher com a imaginação os vazios deixados pelo estado de marginalização a que são submetidos. Daí nasce toda a mitologia em torno do nome de Lampião. O Lampião real e o Lampião imaginado. O jagunço, intermediário do poder, e o caboclo desdentado. O protomiliciano e o Charles Anjo 45. Amaro Vaqueiro, cuja trajetória Ubaldo tem dificuldade de lembrar, surge como uma imagem de resistência contra grupos políticos opressores. Essa memória quase apagada da resistência ancestral amplia as conexões de sua imagem com a identificação construída pelos mitos do velho cangaço.

Nem cowboy, nem Eastwood, tampouco Robin Hood

Um erro comum é a associação entre a literatura e o cinema de cangaço com o faroeste enquanto gênero de ficção. Existem semelhanças, mas elas são superficiais. Ambas partem de premissas bem diferentes e tiveram evoluções independentes. E essas diferenças são importantes para entender o Cangaço Novo. O tema central dos antigos filmes de faroeste era a luta do bem contra o mal. Até aí, tudo bem. Mas as imagens do que era o bem e o mal se projetavam em temas como a superação das dificuldades impostas pela natureza e sobre como construir uma comunidade ordeira, ou seja, a luta da civilização contra o selvagem.

O herói típico do faroeste, segundo o livro Film Art, se situava entre dois polos. Se sentindo em casa nos ermos desertos do Oeste americano, tendia, no entanto, para a justiça e a civilização. O que passa desapercebido é a naturalização dos povos indígenas como a personificação do mal e do selvagem a ser abatido. Por fim, ainda segundo o livro citado, o mocinho decidia se juntar às forças da ordem ajudando a combater seja lá o que for que o filme apresentasse como uma ameaça à estabilidade e ao progresso.

As histórias de cangaço não têm as mesmas características do faroeste, mas o antagonista de lá, que é o protagonista daqui, têm em comum o mesmo fim. Mesmo fim de Ubaldo? Não sabemos. O que sabemos é que a longa história da arte popular que retrata os mitos do cangaço parte do ponto de vista oposto ao do faroeste.

Como decidir ficar do lado de um suposto progresso se esse progresso significa a sua própria escravização ou dizimação? Como trazer civilização se as forças contra quem se luta são aquelas que dizem que você é o animal selvagem a ser abatido? As civilizações originárias das Américas e da África foram barbarizadas por aqueles que alardeavam civilização. Selvageria que segue acontecendo até os dias de hoje.

Por isso, a premissa básica das histórias de cangaço é a resistência. O caboclo oprimido vê no poderoso cangaceiro um semelhante e a luta sai do ponto de vista do suposto civilizado contra o suposto selvagem e passa a ser a luta do oprimido contra o opressor. E aí pouco importa se o cangaceiro A, B ou L, na vida real, cometeu atrocidades. Não porque seus crimes não tenham importância, mas porque a imagem popular do cangaceiro poderoso, astuto e imponente da ficção alimenta o sonho de sua própria libertação. A ambiguidade fica clara aqui. Não é o bandido que as pessoas querem. É sua liberdade, oportunidades e prosperidade.

Mulher no Cangaço

Ubaldo e seu bando de novos cangaceiros são assaltantes de bancos. Ele entra no bando inicialmente forçado pelas circunstâncias e aos poucos assume uma posição de articulador das ações e ao mesmo tempo de mentor ideológico do grupo. Antes de sua interferência, o grupo aterrorizava a população em suas ações praticando todo tipo de violência contra quem quer que fosse. No final, suas ações terminaram por ajudar a população a reaver terras tomadas em hipoteca. Mas a trama leva o grupo a um projeto mais ambicioso do que o mero ideal robinhoodiano.

Principal candidata a herdeira do legado e liderança do pai antes da chegada de Ubaldo, Dinorah é pintada como uma mulher forte, com personalidade e iniciativa, mas suas decisões são impulsivas, condicionadas pelos traumas por que passaram depois da morte do pai, semelhante ao que ocorre com a irmã Dilvânia. Além disso, sua improvável ascensão à liderança é embarreirada por uma parte do bando que não aceita receber ordens de uma mulher.

Vi uma das produtoras falando no making of, e isso nos leva de volta ao velho cangaço, que eles queriam uma cangaceira “menos condescendente” do que as antigas. De fato, tanto Dinorah, com seu temperamento explosivo, quanto sua irmã de personalidade mais doce são mulheres fortes. Mas é preciso ter em mente que um século atrás as coisas eram diferentes. Antes de Lampião, a entrada de mulheres nos bandos era não apenas proibida, mas um tabu, uma quebra da proteção mística que os cangaceiros acreditavam ter. Ter relações sexuais com uma mulher obrigava o cangaceiro a refazer todo o ritual de proteção mística que eles faziam. Mulher trazia azar ao bando.

A quebra de paradigma promovida por Virgulino Ferreira coloca a mulher nordestina em uma posição nunca antes ocupada. As únicas perspectivas para uma mulher camponesa até então era se tornar parideira ou prostituta. A vida dessas mulheres dentro dos bandos também não era fácil. Por um lado, os homens dos bandos historicamente sempre tiveram o hábito de cozinhar e costurar. Sim, é ele mesmo aí na foto, Virgulino na máquina de costura. As mulheres não necessariamente assumiam essas posições. Mas sua segurança ficava ameaçada quando se tornavam viúvas. Passavam à condição de arquivo vivo de informações sobre a atuação dos grupos e se não encontrassem um novo companheiro, estavam em risco de morte. Voltar à vida normal não era autorizado e muitas foram assassinadas.

Em todo caso, uma cangaceira era a imagem da mulher independente e poderosa, se comparadas com os padrões da época. E de condescendentes não tinham nada, ainda que estivessem inseridas na sua cultura e no seu tempo. Não dá para comparar com a atualidade sem fazer os devidos ajustes. Mas uma mulher empunhando uma arma naquela época era revolucionário. Além disso, quebrando paradigmas que estabeleciam os comportamentos aceitáveis para uma mulher então. E não, os bandoleiros não foram exterminados por causa de Maria Bonita, Dadá ou por forças místicas. Eles foram abatidos porque Getúlio Vargas enviou reforços federais para isso.

Ambas, Dinorah e Dilvânia, passam por problemas causados pelos traumas que sofreram com e depois da morte do pai. Não vou falar sobre isso para vocês ficarem com vontade de ver a série. A mudez da mais nova e a impulsividade agressiva da mais velha são seus pontos fracos, mas são também uma força que as coloca em ação. Fico me perguntando que posições vão ocupar as duas nas temporadas seguintes…

Mito de Resistência

Os filmes de Velho Oeste são como um mito fundador. Aquelas histórias que procuram explicar como começa uma determinada civilização. E como fruto do processo colonial, traz implícita a ideia de genocídio como um feito heroico. Os mitos e a realidade envolvendo o cangaço estão longe de ser pacifistas, mas protagonizam o outro lado da história.

Não era um movimento popular como conhecemos hoje, mas subverteu o poder estabelecido e questionou o paradigma genocida que funda as sociedades coloniais. E mesmo alguns paradigmas de gênero. Mas, enquanto gênero literário único, brota da terra como um mandacaru, ou seja, é fruto de uma longa evolução em seu próprio habitat. Gênero se aplica às histórias, não à História. Ficção e fato são diferentes, mas andam lado a lado. E é preciso separar bem as coisas.

Claro que não vai demorar para aparecer o mimimi de sempre sobre defesa de bandidos. Bandido bom é bandido que faz o que o poder quer. Na verdade, esses nem são bandidos, segundo quem tem o poder de produzir informação. O grande feito de Cangaço Novo não é apenas transformar crimes em luta social, mas transformar silêncio em voz. Mudos diante da violência de seus traumas, a população da fictícia cidade de Cratará reinventa os mitos de resistência ancestral do oprimido contra o opressor.

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Duas ou três coisas que você não sabia sobre o triplex do Guarujá, o Museu Nacional e a senzala

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Como é que se faz pra transformar uma nação gigante e promissora em um pária mundial e quais são as motivações para isso? E mais, quem orquestra e executa um plano desses, se é que existe um conspirador por trás disso tudo? Desde quando esse tipo de coisa vem acontecendo? Pode até parecer teoria da conspiração, mas não é. Ver a história se repetindo ao longo de tantos anos é, na verdade, sinal de que os motivos que fizeram as pessoas agirem no passado seguem influenciando decisões no presente.

Desde as passeatas de 2013 o país tem vivido momentos de turbulência. Parece que as pessoas perderam a capacidade e o interesse de se ouvirem. O impeachment da Dilma, o projeto político chamado Lava Jato seguido das revelações da Vaza Jato, o caos que foi o governo Temer com a suspensão de direitos trabalhistas, cortes no investimento público e seus 80% de rejeição. Depois, o os Bolsonaro no poder, a pandemia, o 8 de janeiro, o genocídio cruel dos ianomâmi e agora todos os escândalos com joias, cartão de vacinação, minuta do golpe e o envolvimento de militares em todos os casos.

Não demorou muito para se chegar aos 51 imóveis comprados em dinheiro vivo e às mansões da família Cid. Em comparação, mesmo com a ajuda do FBI, mesmo com o juiz parcial Moro planejando sentenças com o advogado e ex-deputado cassado Dallagnol, nada foi encontrado contra a pessoa que eles tanto perseguiram. Tentaram usar os erros do PT contra eles mesmos. E mais, tentaram colocar erros dos outros na conta dele. E tudo que conseguiram foi o triplex do Guarujá, e o sítio de Atibaia que devem estar em nome de alguém, além de um powerpoint cheio de convicções e nenhuma prova.

Apesar dos erros, as políticas sociais que atendiam a sociedade em diversos níveis – fome zero, bolsa família, primeiro emprego, combate à escravidão, aumento real do salário-mínimo, transposição do São Francisco, Minha Casa Minha Vida, ProUni… A lista é longa. No longo prazo, caso tenham continuidade, têm o potencial de transformar a sociedade de forma abrangente e duradoura. E já estavam surtindo efeitos, domésticas na Disney, pobre nos aeroportos… Os (entre aspas) apressados alegam que não viram nada disso acontecer, mas as estatísticas, a ONU e as manchetes internacionais não deixam mentir. E tudo o que eles têm são notícias falsas ou manipulação de informação. Lula diz que 700 milhões morreram, foram 700 mil, tá, como se 700 mil mortes fosse aceitável. Agora o Bolsonaro diz que vai processar o Lula… Umas esquisitices sem sentido

Essa briga toda entre as pessoas, isso vem de algum lugar. Tudo o que aconteceu nos últimos anos tem um único motivo: tirar a senzala do poder. Tiraram a senzala e colocaram o capitão do mato, só que o capitão do mato tentou tomar a casa grande para ele. Que burro, dá zero pra ele! Não existe casa grande, senzala e batalhão do mato. Se você não é parte da casa grande, você é senzala. O paradigma que molda as relações de poder no Brasil só tem dois lados. Se te deram poder para se sentar na cadeira de presidente, ou para invadir morro e matar preto e pobre, ou para extorquir e vender gato-net, ou mesmo para vender as drogas que… adivinha quem produz, isso não significa que você é parte da família, otário! Você é senzala. Eu podia falar em termos de gente pobre e gente rica, ralé e bacana. Acontece que a palavra senzala exemplifica melhor para o que vou dizer. Mas o binômio casa grande senzala é tema talvez para um próximo vídeo. Deixa aí nos comentários se você quer que eu fale mais sobre esse tema.

Tirar a senzala do poder. Tirar a senzala do poder significa manter as estruturas de poder como elas têm sido desde sempre. Toda essa baboseira de combate à corrupção. Corrupção é ferramenta de controle político. Não sou contra o combate à corrupção, ao contrário. Mas eu sempre me pergunto por que os maiores interessados em manter a corrupção iriam combater a corrupção? E se são todos corruptos não estariam todos no mesmo time? Puro teatro! Significa manter o Brasil como o celeiro do mundo. Isso é muito importante. Impedir o desenvolvimento social, tecnológico e industrial do país. E significa medo de perder o poder. Mas, perder o poder para quem? É medo de virar (entre muitas aspas) um país preto ou índio. É a necessidade de provar a cada dia umas teorias estranhas de superioridade. E é aqui que que dou um salto até um outro momento delicado da história. E é aqui também que começa a ficar claro de onde vem o mal que estamos vivendo.

São episódio aparentemente desconectados. Mas uma palavra faz a ligação: medo. Em meados do século 19, um problema unia todas as Americas, o chamado “problema do negro”. O que fazer com a imensa população de escravizados e ex-escravizados que ganhavam liberdade aos poucos? Muitos países já vinham extinguindo a escravidão, outros ainda relutavam… Mas um episódio específico acendeu a preocupação dos donos do poder neste hemisfério. Entre 1791 e 1804, escravos, quilombolas e não brancos livres conseguiram o que ninguém achava que seria possível. Depois de 12 anos de batalhas contra as tropas de Napoleão, uma revolução! Conduzida por escravos auto-libertados, a insurreição contra o domínio colonial francês na ilha de São Domingos, hoje Haiti, não apenas libertou os escravos, mas formou o primeiro estado negro nas Américas. Senzala no poder? Por pouco tempo. As consequências para o pequeno e jovem país foram drásticas. Isolamento internacional, dívida escorchante com a França. Mais tarde vieram a ditadura e a ocupação pelos EUA, claro, no início do século 20. As consequências da ousadia são vividas até hoje por lá. Mas o fantasma negro do Haiti assombrou as mentes brancas aqui e em toda a América.

Essa mesma época é conhecida no Brasil por ser palco do maior número de levantes e revoltas escravas desde sempre. Em todas as partes, Salvador, Recife, São Carlos, Carrancas, MG, Cabanagem, PA, Vassouras, RJ, Balaiada, MA, Vale do Paraíba, São José do Queimado, ES, Taubaté, Pindamonhangaba e São Roque, SP, Santana do Livramento, Capivari, Encruzilhada e Herval, RS. A lista é grande também. Não podemos virar um país negro! Vem de longe essa briga.

O primeiro censo oficial brasileiro aconteceu em 1872. Éramos 10 milhões de habitantes e a importação de imigrantes europeus já ia longe nessa época. Nas suas fases iniciais, a partir de 1820, eram trazidos entre 10 e 20 mil europeus por ano. As primeiras experiências ocorreram ainda nos tempos de D. Pedro II. As cidades de Nova Friburgo e Petrópolis no Rio foram fundadas por estes imigrantes. Ainda assim, o censo de 1872 contou 62% de não brancos em comparação com 38% de brancos. O fim da escravidão foi adiado com ferocidade, o Brasil foi o último país a abolir o sistema escravagista. Mas era tão inevitável quanto as revoltas que o precederam. Já existiam duas classes de pessoas no Brasil nesta época, os imigrantes não criaram o demônio. Mas um desses grupos detinha todos os privilégios e um time quando traz reforços não é para eles jogarem com a camisa do adversário.

Neste cenário se inicia um projeto para substituir o trabalho negro. E aí vem a pergunta: por que substituir o trabalho negro? Por que substituir milhões de pessoas que já faziam e já sabiam fazer o trabalho? Por que investir tanto tempo, dinheiro e energia? É que o desejo de substituir o trabalho negro na verdade ocultava um outro desejo das elites brancas. O desejo de ser um país que o Brasil não é. E esse desejo, vem de onde? Aqui, me lembro do livro da historiadora Célia Marinho de Azevedo, publicado em 1987 e reeditado em 2004, mas infelizmente esgotado. Deve ter um PDF em algum lugar. Se chama Onda Negra, Medo Branco. A pesquisadora esmiúça a literatura e os arquivos da câmara de deputados paulista justamente neste mesmo período em busca das discussões intelectuais e no legislativo de São Paulo sobre o problema do negro, sobre as revoltas, sobre a inexorável abolição da escravidão, sobre o que fazer com a futura imensa população de ex-escravizados e sobre o patrocínio estatal para imigração e quais grupos seriam racialmente aceitáveis para serem recebidos como os novos brasileiros em substituição daqueles não-cidadãos. Tinha até uma tal Sociedade Central da Imigração (SCI). Não confundir com o CSI, que é outra história. Aliás, quer ver um vídeo sobre não-cidadania? Clica no link acima à direita.

Homens poderosos discutindo o destino da gente comum. A explicação mais popular na época era aquela velha ladainha racista. Precisamos trazer trabalhadores europeus porque o negro tem uma tendência natural à preguiça, à indolência, ao alcoolismo. Tá, mas alcoolismo é sinal de depressão e isolamento social. Indolência e vagabundagem, pff, vai trabalhar debaixo de pau para depois ver sua mulher ser estuprada sistematicamente e seu dono enriquecendo às suas custas e dizendo que isso tudo é por causa da sua inferioridade para ver se não vai te dar uma baita preguiça e uma depressão profunda também. E isso é resistência também. Resistência não se faz apenas com revoltas e levantes. Se faz no boicote diário, nos pequenos prejuízos também e em última instância tem no corpo seu local de batalha. Resistência ao trabalho, sim, ao trabalho forçado para encher a pança de vagabundo. Enfim… Qual vocês pensam que é a verdadeira explicação para todo esse esforço para substituição dessas pessoas? Por que deixá-las sem nada? Por que não integração, educação? Porque integração e educação iam realizar ontem o que não querem que seja feito hoje, quase 200 anos depois que essas discussões ocorreram. Bolsa família, fome-zero, cotas.

E que outras alternativas existiam para o problema do negro? Eliminação por genocídio? A Guerra do Paraguai e seus voluntários da pátria foi uma tentativa nesse sentido. Mas são 62%. A Alemanha antes da Segunda Guerra tinha 0,6% de judeus. Varrer o problema para debaixo do tapete? Bem, isso sim tem sido feito desde sempre. Mas… nem tudo está perdido! Alguém teve uma ideia genial! Podemos sim virar um país branco! Se trouxermos muitos europeus e eles se misturarem às populações inferiores negra e indígena, em 100 anos seremos um país totalmente branco. Parece brincadeira, mas não é. Isso foi uma política de estado brasileira. Aqui não posso deixar de recomendar um segundo texto curtinho, do qual tiro as informações a seguir, o artigo “Previsões são sempre traiçoeiras, de Lilia Schwarcz”. Em 1911 o Brasil participou de uma aberração chamada Congresso Universal das Raças, em Londres. Patrocinado pelo governo do então presidente marechal Hermes da Fonseca e apoiado “cientificamente” pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro (aquele mesmo que pegou fogo em 2018), João Baptista de Lacerda foi o homem escolhido pelo marechal para representar o Brasil. Médico formado pela Faculdade do Rio de Janeiro, Lacerda foi Ministro da Agricultura, chefe do Laboratório Experimental e posteriormente diretor do Museu Nacional. Sua missão era apresentar o audacioso plano governamental de branqueamento e eliminação das raças inferiores negra e indígena por meio, pasmem, da miscigenação. Sim, lavou tá novo. Da discussão no legislativo paulista em fins do século XIX ao golpe de 2016, passando pelo projeto de nação no início de 1911, tudo passa pelo incômodo racial. Tudo passa pela criação de teorias esquisitas para tentar dar uma explicação qualquer a algo que não passa de incapacidade de se ver como igual ao outro.

Isso tudo foi parte de um grande projeto nacional que não deixa nada a desejar a qualquer teoria da conspiração que você imaginar. E olha que temos passado por tempos muito férteis em teorias da conspiração! Encomendaram até um quadro que ficou muito famoso. Chama-se A Redenção de Cam, de Modesto Brocos. Olha como fica branquinho, a avó, a mãe e o bebê. Lavou tá novo. Eu também sou parte dessa história. A família nordestina sai de Alagoas e encontra a família italiana no Rio. Só que minha avó era cabocla.

Mas nem todo mundo acreditou nessas teorias malucas de limpeza racial. Houve quem defendesse, desde aquela época, o aproveitamento da mão-de-obra negra e mestiça. No meio loucura toda que foi o período pre-abolição, havia quem falasse o óbvio: vamos dar oportunidades, educação, trabalho às pessoas que já estão construindo esse país há séculos. Não dá para dizer que foi por falta de aviso. Foi uma escolha mesmo. Em resumo, faz de conta e medo branco que levaram mais da metade da população do país para a marginalização, estado de coisas que é cultivado até hoje. Tiro pela culatra que só poderia levar o país a um desastre social ao longo dos séculos seguintes, sustentado com todas as forças à disposição todas as vezes que a senzala ameaça as estruturas de poder vigentes. Mas isso também é um projeto (ou ainda é um projeto) vigente. E aqui não posso deixar de recomendar um outro livro, este bem mais recente, do professor Jessé Souza: A Elite do Atraso. Link na descrição. E é aí que a contradição maior acontece. Medo de quê? Medo de quem? Medo de perder o poder para quem? O golpe de 64 e o golpe de 2016, apoiados pelo governo norte americano, a destruição da indústria nacional e a manutenção do status de celeiro do mundo. As elites brasileiras parecem bem felizes sendo capacho.

Será que existe uma força oculta por trás desse mal? A versão atual do que antes chamavam de tendência natural à indolência é o nosso bom e velho isso é cultural. Vi um dos homens mais poderosos do Brasil atualmente no ICL outro dia. A notícia era sobre mais um golpe bilionário envolvendo uma empresa privada, a companhia de energia Light, depois do anterior envolvendo as Lojas Americanas e os mesmos bilionários. Vamos ouvir o que ele tem a dizer: [vídeo]. Link na descrição para quem quer ver a notícia completa.

Para mudar tem que querer. As pessoas muitas vezes precisam esconder o que realmente sentem. Tentaram provar cientificamente (entre mil aspas) que existem raças humanas superiores e inferiores. Não conseguiram, a ciência de verdade comprova que somos todos iguais. Não acreditar na capacidade do povo significa realmente “eu não acredito” ou significa “eu não quero que essas pessoas consigam”? Por trás de “o Brasil é isso aí” tem o não quero acreditar nessas pessoas. E culturas são criações humanas. De qual teoria mirabolante vocês acham que vem a ideia de que uma classe inteira de pessoas é constituída de incapazes, quando o mesmo grupo que diz está é roubando as nossas oportunidades? A história responde essa pergunta. Homens poderosos inventando teorias estrambólicas para provar para si mesmos que são superiores. Não importa que ele seja um capacho internacional, o importante é não perder o status para essa gente aí.

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Racismo estrutural e os intermediários do poder (2/3)

Por que é difícil entender o racismo estrutural? Existe uma barreira de negação, é claro. Muita gente reluta em aceitar uma realidade difícil. E existe também um clima de acusação, como se a culpa de erros do passado caísse sobre as pessoas hoje. Clima que se fecha ainda mais em tempos de polarização como os atuais. Mas negação não é o mesmo que incompreensão. Como se pode compreender essa ideia?

Lembro que tive dificuldade de assimilar a ideia de evolução na teoria das espécies. Sentia falta de um modelo de a ser seguido. Como um projeto de espécie que sirva de meta. E isso ao mesmo tempo é o que há de mais bonito no darwinismo: ele parte do caos absoluto, da mais completa ausência de objetivo que é o cosmos.

É porque os conceitos de Darwin se chocam com uma das características mais interessantes da mente humana. Característica que dá forma ao nosso modo de pensar. Aquilo que nos diferencia das demais espécies, ou seja, a capacidade potencializada de planejar um futuro, e então construí-lo.

Habilidades e habilidades

Não que o darwinismo seja ruim ou que nossa habilidade seja limitante. São apenas incompatíveis ou contraditórias entre si. A espécie X adquiriu a característica y para se adaptar à mudança z. Esse tipo de explicação sempre me soou estranha. Parece que viu as transformações no ambiente e resolveu planejar umas mudanças em sua vida. É fácil transformar o darwinismo em uma espécie de planejamento.

É que a aptidão que nos caracteriza e nos permite arquitetar e realizar coisas que vão desde um fim de semana na praia depois da pandemia até o Taj Mahal ou o Plano Piloto, bate de frente com uma outra característica da mente humana – uma incapacidade, neste caso.

O tamanho da habilidade que temos para planejar o futuro, é igual à dificuldade que encontramos em conectar eventos distantes em série, só que na direção oposta. Fazer conexões de causa e efeito ou de continuidade em séries longas através da história não é nosso forte. Tem uma série de vídeos no canal do biólogo Pirula no YouTube onde ele fala sobre essa coisa da mente descontínua e sobre evolução em geral. É basicamente o conflito da dificuldade em enxergar processos com a tendência a “ver” coisas prontas.

De volta ao racismo estrutural na cultura…

Mas eu não sou biólogo – se eu tiver falado muita bobagem, biólogos, por favor me corrijam. O tema do artigo é racismo estrutural na cultura brasileira. Apenas me parece que essa dificuldade com continuidade em séries longas ajuda a compreender por que é difícil pensar, entender e demonstrar o racismo na estrutura cultural, ou seja, como esse conjunto de crenças e hábitos coletivos se adaptam e se transformam ao longo da história, perpetuando-se como uma coisa natural.

Digo natural não no sentido biológico, mas, como mencionado no artigo anterior, no exemplo que dei sobre crianças de rua, como uma coisa tão corriqueira e insignificante que ninguém nota. Não gera nenhum tipo de emoção ou reação. É como ver o congresso de representantes do povo e sequer se dar conta de que eles são em sua maioria esmagadora homens brancos ou estão a serviço desses; aquilo que faz com que as pessoas nem mesmo se deem conta de que isso precisa ser questionado.

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Atacado e varejo

Enfim… Um bom lugar para pensar sobre todas essas coisas são as favelas, quebradas e periferias em geral.

Uma favela não é um lugar de miséria absoluta. Existem classes dentro de comunidades marginalizadas também. Há os mais pobres e desprovidos de condições materiais e há também aqueles que estão mais próximos das classes médias baixas do “asfalto”.

Existem comerciantes, donos de bares, vendas. Há também prestadores autônomos de serviços de transporte, como motobóis e motoristas de lotada. E além desses que vivem e trabalham em suas comunidades, existe uma multidão de trabalhadores assalariados, subempregados e informais que cruzam a cidade para ganhar a vida.

Mas a classe que circula a maior quantidade de dinheiro nas periferias brasileiras é aquela conhecida como traficantes de drogas. (Não vamos falar sobre milicianos aqui por uma questão de foco.) Digo “conhecida como” não porque não sejam traficantes ou porque queira aliviar a barra deles. Mas porque esse nome, traficante, atribuído a pequenos distribuidores de drogas, é em si uma forma de manter ocultas – ou de fazer silêncio sobre relações de poder muito maiores.

Farinhas e farinhas

Não dar nome à classe dos que realmente produzem e importam/exportam drogas ilícitas (o mesmo se aplica às armas), ou fazer parecer que é tudo uma coisa só, é conveniente para muita gente.

O criminoso que vende drogas no varejo em uma periferia é bem diferente do que comercializa grandes quantidades de drogas, gerencia essa logística desde seus escritórios – muitas vezes em instituições públicas – e as transportam em seus helicópteros particulares, para lembrar de um exemplo recente.

Notícias sobre tráfico de armas
Racismo estrutural: notícias de jornais que mostram o envolvimento das forças armadas e da polícia no fornecimento de armas para os traficantes varejistas nas favelas.

Ambos são parte da estrutura social racializada em que vivemos. Mas são os últimos que detêm o poder de fazer e manter as coisas como elas são. São funções sociais diferentes e precisariam receber nomes diferentes para que sejam vistas, percebidas, diferenciadas. E para que não sejam, ao contrário, “passadas” todas juntas em um só pacote como se fossem farinha do mesmo saco.

Traficantes de colarinho branco e traficantes varejistas ocupam posições diametralmente opostas na sociedade, embora mantenham relações de interesse.

Papéis sociais e racismo estrutural

O fato é que sob a pressão das necessidades e atividades diárias, as pessoas vão se acomodando a seus papéis na sociedade. Hoje e em qualquer época. E é justo que se acomodem, tanto quanto é compreensível que percam a perspectiva do conjunto de determinações históricas que criaram não apenas as condições necessárias para que elas ocupem estes postos sociais, mas também as próprias posições.

O espaço ocupado pelo carrasco do primeiro artigo da série sobre racismo estrutural é uma dessas posições. É um espaço vazio que precisava ser preenchido. As posições sociais são como um conjunto de determinações que une as necessidades da gente comum às dos grupos de poder; um vão dinâmico a ser ocupado, uma posição de poder de empréstimo.

Outra dessas posições criadas/ocupadas pelas forças sociais no Brasil escravocrata eram os escravos de ganho. Escravos de ganho ou pretos ganhadores eram seres humanos obrigados à condição e a trabalhos de natureza escrava, de um modo geral atuando em áreas urbanas e que costumavam vender coisas ou prestar pequenos serviços pelas ruas da cidade para ganhar algum dinheiro.

Mas o lucro resultante do seu trabalho, é claro, não pertencia a eles. Na condição de propriedade, o dinheiro que ganhavam pertencia igualmente aos seres humanos que se acreditavam seus proprietários. Ou seja, o ganho dos ganhadores é um engodo, tinha dono.

Mas certamente era permitido tirar uma parcela pequena para uso pessoal, o que representa um pequeno ganho para pessoas extremamente necessitadas e um ganho enorme, muito maior que a renda de ambulantes, para seus senhores: mais uma vez, a criação de uma casta de intermediários do poder.

O que querem os deuses?

Gilberto Freyre se refere às mulheres que desenvolviam este tipo de atividade como “pretas boceteiras”. É claro que ele não cunhou essa expressão, é provável que a tenha escutado desde criancinha.

Um aparte: na Argentina é comum se referir à genitália feminina como caja, caixa em espanhol. A palavra boceta hoje, no Brasil, tem apenas um significado, mas se você for ao dicionário, vai ver que existiu um outro. É que essa palavra originalmente significava – adivinha! – caixa, estojo.

E sua origem, segundo o Houaiss, remonta à mesma palavra em latim (bŭxis, buxĭdis) que originou também o termo inglês para caixa: box. Se algum linguista estiver lendo, por favor comente. Mas o próprio dicionário faz a conexão direta com o mito grego da Caixa de Pandora .

E não dá para não conectar também com a disponibilidade sexual à qual eram submetidas as mulheres africanas e suas descendentes. Disponibilidade que não ocorre hoje da mesma forma que outrora, mas que persiste em diversos discursos culturais. Enfim, elas poderiam ter sido chamadas de pretas caixeiras, como eram conhecidos os homens vendedores ambulantes antigamente. Mas por que não mobilizar a estrutura uma vez mais?

De todo modo, ganhadores, caixeiros e boceteiras nos ligam diretamente aos camelôs de hoje pela semelhança da atividade. No entanto, camelôs não ganham nada para seus senhores. São apenas subempregados. Quem serão então os ganhadores atuais ?

O teatro dos inocentes

“Ah, então a culpa é deles! Quem mandou vender drogas?” Os seres humanos fazem coisas boas e coisas ruins em qualquer classe ou grupo social. A questão aqui é sobre as funções ocupadas pelos diferentes grupos sociais e sobre que grupos têm o poder de manipular as coisas. Mas principalmente sobre os mitos criados a respeito disso para manter as coisas ocultas. Quem tem realmente poder de mover as coisas, de produzir e transportar grandes quantidades de drogas e armas sem ser incomodado? Quem pode manter os grupos sociais “nos seus devidos lugares”?

Todos os dias vemos nos jornais as notícias do teatro do combate ao tráfico de drogas. A polícia sobe um morro, troca tiros, mata e prende um monte de gente, enche os presídios de criminosos – “quase todos pretos ou quase pretos” – e recheia os jornais com os contos sobre o combate ao tráfico.

Sempre em movimento…

Não sei quanto a vocês, mas a impressão que me deixavam essas histórias era que “os políticos estão sempre muito preocupados em roubar mais e mais para ter cada vez mais dinheiro; eles não querem saber de problemas sociais, têm interesse em manter a miséria e a ignorância para conseguirem mais votos; e a única conclusão é que tráfico e violência são apenas uma consequência do descaso”.

Bom, eu deixei de pensar assim faz tempo. Por dois motivos simples. Primeiro, eu não acredito em descaso. Essa é a segunda das grandes mentiras que se conta sobre políticos diariamente nos grandes jornais. Ninguém chega e se mantém em postos tão altos com displicência. As coisas são como são porque interessa a alguém que elas sejam assim.

E o segundo grande mito diário: políticos só querem saber de dinheiro. Políticos não têm interesse em dinheiro. Já podem ficar chocados! Dinheiro é apenas um meio. Isso é o mesmo que dizer que mecânicos só querem saber de ferramentas, quando na verdade o que eles querem é manter as máquinas em movimento.

Paredes culturais

Racismo – tanto quanto machismo ou outras formas de discriminação por gênero, orientação sexual, origem etc. – são construções culturais, não se trata de nenhum tipo de predisposição por parte de qualquer grupo.

São ideias e práticas que vêm se repetindo ao longo do tempo. Nenhum traficante de escravos do século 17 planejou a disposição das relações de forças como elas ocorrem hoje no Brasil. São apenas ideias que vêm se transformando com as novas demandas do meio. E essas construções não têm paredes de areia. São sólidas e tem muita gente poderosa que tem interesse em manter as coisas como são.

O problema não são negros, índios, mestiços, paraíbas, suburbanos ou qualquer grupo de não-brancos. Uma raça de alienígenas poderia ter caído na Terra e estaria ocupando o mesmo lugar – ou o oposto. O problema são as construções culturais, estruturas racializadas que aprisionam as pessoas em seus devidos lugares por séculos.

E no Brasil essas estruturas não vêm do cosmos. Vêm de nossas práticas raciais históricas. Vêm sendo forjadas ao longo dos séculos. São práticas e ideias que vêm se adaptando e sobrevivendo às mudanças do ambiente. E uma de suas estratégias de sobrevivência é ficar quase invisível.

Uma classe de indesejáveis

Dizem que a única raça que existe além do Homo sapiens é a Raça Rubro Negra. Dizem também que racismo não existe: “bobagem, nós somos gente boa”. E têm razão! Pelo menos nesse ponto. Eu também acredito que no convívio entre as pessoas exista amizade, camaradagem, solidariedade.

Mas existem grupos sociais que têm estado historicamente em situação muito mais desvantajosa. E isso não acontece por desleixo. Ao longo da história brasileira pós-abolição o país passou por algumas tentativas de purificação ou branqueamento. Eliminação racial, eugenia, racismo científico mesmo. O mesmo que levou a Alemanha ao nazismo.

Apesar de aparecerem disfarçados com outros nomes ou modificados em alguns pontos, foram planejados pelas elites política e econômica brasileiras. São ideias construídas e não estar consciente disso é uma forma de perpetuar suas consequências na sociedade. Toda a estrutura social está mobilizada para esse fim. Uma parcela enorme das pessoas é mantida à margem da sociedade e as consequências disso a longo prazo são evidentes. Não é possível encontrar soluções quando mais da metade da população está excluída delas.

Finalizando

Pandora recebeu dos deuses uma caixa contendo nada mais nada menos que todos os males do mundo. Não podia abrir de forma alguma, ordenaram os deuses, sob pena de ser responsabilizada pelas consequências terríveis da disseminação dos males.

Minha caixa, minhas regras
Minha caixa, minhas regras.

Quem é que aguenta receber presente e não abrir? E dos deuses! Por que deu então o presente se não era para abrir? Resposta: porque era para abrir! E ela abriu bem rapidinho.

As pessoas ocupam suas posições e encenam seus papéis nesse teatro. Pandora tinha sido avisada sobre o conteúdo da caixa no momento mesmo da entrega. Ela só não sabia de alguns detalhes. Não sabia do teatro no qual foi escalada, da conveniência de sua participação e principalmente sobre para quem isso era conveniente. Ou sabia e viu alguma vantagem imediata nisso?

De nossa parte, ninguém garante que exista um processo de descendência direta do escravo de ganho para o traficante varejista. Isso é uma generalização. Trata-se apenas da reutilização histórica de uma ideia. Ideia que pode se aplicar a muitas outras relações entre escravos e senhores: utilização da força de trabalho intermediário, em troca de pouco, visando a perpetuação da relação de escravidão. São apenas os meninos abrindo a caixa que ganharam. Apenas uma pequena vantagem em troca de fazer a vontade dos deuses.

Comentem, compartilhem e não esqueçam de dar uma olhada nos dois outros artigos da série aqui e aqui. E não deixem de assinar nossa mala!


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Racismo estrutural e os intermediários do poder (1/3)

Tem uma cena de Memórias Póstumas, de Machado de Assis, que me impressionou muito quando li pela primeira vez, ainda adolescente, e que vai sempre me impressionar. No capítulo 68, O Vergalho, Cubas é interrompido em seus pensamentos por uma aglomeração enquanto caminhava pelas proximidades do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. Ao se aproximar, constata: “era um preto que vergalhava outro na praça”.  

A cena da ficção de Machado, que representa o mesmo tipo de práticas fundadoras da estrutura racial da sociedade, se repete em muitas outras obras no Brasil colonial.

Uma delas, uma aquarela de 1822 do pintor australiano Augustus Earle, imagem acima, encena mais um episódio de punição por meio de tortura pública, também sob o olhar do senhor. O braço erguido em vertical, o chicote voando em direção ao corpo arregaçado da vítima, o feitor acompanhando de perto a ação.

Tá, mas isso não acontece mais

É lugar comum repetir, como tantas outras frases dessas que as pessoas repetem sem pensar, que também existe racismo entre os negros ou que os negros é que são racistas. Existe verdade nessa colocação? É possível.

Porém, as mesmas pessoas que repetem esse tipo de afirmação vão negar suas conexões históricas. Conexões que me fazem acreditar que a repetição destas frases seja tão filha das práticas escravocratas quanto a repetição dos padrões de comportamento retratados naquela pintura. Palavra e ação.

Se a frase é filha da escravidão e perpetua seu DNA, por que eu deveria acreditar que suas irmãs, as práticas escravistas, já teriam morrido?

É difícil também perceber uma outra contradição que existe nesse tipo de crença. Os mesmos sintomas que são tão nítidos e servem para denunciar o racismo em não-brancos, são invisíveis quando se está diante do espelho.

Na verdade, em ambos os casos, trata-se de relações históricas que evidenciam como as estruturas sociais naturalizadas são produzidas e reproduzidas por meio de paradigmas de comportamento que têm origem em práticas racistas e em última instância são exemplos de racismo estrutural. E essas práticas envolvem a todas as classes e pessoas.

Muita gente tem falado sobre este tema ultimamente e o livro do momento é Racismo Estrutural de Silvio Almeida, vale a pena conferir. Muita gente não gosta do nome racismo estrutural. (Eu também não. Me incomoda, essa expressão! Não sei bem por quê…) E as pessoas ainda têm dificuldade de entender o que é racismo estrutural. Nesta série de 3 artigos, vou tentar mostrar alguns exemplos.

Uma imagem repulsiva

A relação que se estabelece entre aquelas duas pessoas escravizadas não pode ser compreendida intuitivamente. A primeira emoção é de repulsão pelo carrasco. “Como ele pode fazer isso com seu próprio irmão!?”

O ser humano tende a se solidarizar com o sofrimento comum. Em situações em que há sofrimento, é comum que membros de comunidades em situação de risco se ajudem mutuamente.

Exceções vão ocorrer quando esse grupo está polarizado por alguma disputa ou quando dividido por algum outro fator externo.

Na verdade, o hábito de condenar pessoas à tortura pública, pelas mãos de outras pessoas igualmente escravizadas é muito anterior à imagem. A partir da década de 1820, muitos países americanos já estavam começando a abolir regimes escravocratas.

Não é minha intenção aqui discutir os eventos históricos que deram origem a esse tipo de prática e, na verdade, não sei se existe um evento que marque seu início. Prefiro seguir olhando as representações produzidas sobre elas.

Detalhe da pintura de Earle: relações de poder repetidas e silenciadas como base do racismo estrutural.
Detalhe da pintura de Earle: relações de poder repetidas e silenciadas como base do racismo estrutural.

A origem do silêncio

Sempre que vejo essa imagem ou lembro da cena de Machado, me pergunto como teria sido a primeira vez que ela ocorreu. E como uma cena tão contra a natureza humana pode ter se tornado tão natural.

“Você vai dar cem chibatadas no seu companheiro para mim. Se se recusar, eu te dou as cem chibatadas e você vai ter que dar duzentas nele”. Poderia ter sido assim a primeira vez? Parece verossímil, embora esse tipo de relação na realidade seja muito mais complexo.

Em todo caso, a partir daí, começa a virar hábito. Fica natural, as pessoas perdem a capacidade de se indignar. Como pode uma cena aparentemente tão chocante ficar tão natural e corriqueira quanto ver uma criança enegrecida em uma rua do centro da cidade e não ser movido por nenhum sentimento de piedade? (Até porque as pessoas têm suas vidas. Imagina o trabalho que daria pegar uma criança dessas, levar para casa, cuidar, criar junto com as suas, isso não ia dar certo!)

É doloroso pensar sobre o tema. É doloroso falar sobre o tema. Vira silêncio. Mas no dia seguinte, um ser escravizado vai ter que rasgar as costas de outro ser escravizado uma vez mais. E a chantagem do senhor também já não precisa ser repetida. Também vira silêncio. Fica apenas o hábito que se repete diariamente através dos séculos.

O poder move montanhas

A pintura retrata uma cena que se passa no Calabouço, prisão que fazia parte das fortificações existentes no hoje inexistente Morro do Castelo, no Rio de Janeiro.

Um parêntesis: que força tão grande faz a elite de um lugar mover as montanhas de uma cidade e enterrá-la com todos os escombros de sua história? O Morro do Castelo, que foi derrubado e virou aterro no Centro do Rio, abrigava a primeira edificação portuguesa construída no Rio de Janeiro em mil quinhentos e tal. E, é claro, era o lar de uma densa população de descendentes de escravos até o início do século 20.

A última vez que vi a pintura do Calabouço foi no livro Defiant Geographies: Race and Urban Space in 1920s Rio de Janeiro, da pesquisadora Lorraine Leu, no qual ela responde a essa pergunta, que tem muitas conexões com o que estou falando. Mas é uma outra história.

A cena se passa no Castelo e a relação de poder que se impõe entre esses dois homens e entre eles e o poder representado pelo feitor, muito bem capturada na troca de olhares entre eles, se perpetua até hoje. O poder, o escravo e o intermediário.

E seria ingenuidade – ou seria conveniente? – acreditar que sua repetição contínua durante o período colonial teve natureza racial, mas hoje não passa de coincidência, arbitrariedade, mera obra do acaso. Relações de poder não são obras do acaso.

Mas eu sou gente boa, só gosto de fazer umas piadas…

É comum as pessoas pensarem sobre o racismo como um desentendimento entre as pessoas. Ou como uma ofensa, um xingamento. Muitas vezes são pessoas que não tem uma relação de autoridade ou de poder tão discrepante. São “gente como a gente”, como se diz.

E o lugar comum mais recente sobre isso no Brasil é a rejeição a tudo que cheire a politicamente correto. “Não se pode dizer mais nada, é a ditadura do politicamente correto”.

Atos de agressão são tolerados porque são compreendidos pelas pessoas como fatos aleatórios, arbitrários. E quem repete esse tipo de discurso fica chato. É irritante repetir essa ladainha. As pessoas que só querem se divertir e nada mais.

É melhor não falar então. E mais uma vez o silêncio entra em cena. É justamente a dificuldade de enxergar conexão histórica entre fatos aparentemente ao acaso que constrói a ideia de que não existe a conexão. Fica parecendo que não são construções sociais, que não há nexo histórico.

A teoria de Brás Cubas

Depois de constatar que o homem que torturava outro homem em praça pública era um de seus ex-escravos, Cubas ensaia uma explicação: “Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-as a outro”.

Parece razoável. Uma reação movida por ressentimento ou apenas por encontrar alguém colocado em situação de maior vulnerabilidade que a sua. Um ato isolado, sem conexões além da amargura íntima de um indivíduo.

Porém, ser libertado pelo senhor o coloca em uma situação de poder, embora ainda dentro do sistema criado pelo senhor. Uma relação de poder que convém ao senhor. E aí me ocorre um outro lugar comum: “a polícia brasileira é incorrigível, é impossível, ninguém vai consertar”.

Os grupos detentores de poder, quando querem, são capazes de mover montanhas e soterrá-las com todas as suas conexões históricas. E o sentimento racista é que motiva isso e coisas muito piores. Então, se eles não consertam a polícia é porque têm interesse em manter a estrutura por eles construída como está.

Violência, silêncio, repetição…

O desempenho de um ato de agressão não tem nada de aleatório. Só é possível representar um ato deste tipo quando os personagens já estão muito bem estabelecidos. E para que isso aconteça, a repetição seguida de silêncio é imprescindível.

Silêncio não significa necessariamente ausência de som – ou quase nunca significa. É possível haver silêncio no meio do mais ruidoso burburinho. É possível até mesmo, e muito frequente, haver silêncio em meio à gritaria mais estridente. Silêncio, em vez disso, é a própria ausência de consciência da estrutura racial que se estabelece por meio da repetição inconsciente dos atos de violência.

Silêncio é não ver o fio histórico de violência/silêncio/repetição, violência/silêncio/repetição… É ver a imagem de um policial castigando crianças, entender que ele estava “apenas cumprindo seu dever ao controlar os arruaceiros” e não enxergar que é preciso que cada pessoa desempenhe seu papel nesse teatro para que isso ocorra.

Ex-capitão da PMRJ em 2011, promovido a major meses depois de agredir crianças com borrifador de pimenta como exemplo de racismo estrutural.
Ex-capitão da PMRJ em 2011, promovido a major meses depois de agredir crianças com borrifador de pimenta como exemplo de racismo estrutural.

Quem controla quem?

É preciso não só acreditar que o policial esteja apenas cumprindo seu dever para que existam pessoas menos dignas de proteção da sociedade – “na Zona Sul eles não fazem isso”. É necessário também que o sofrimento dessas pessoas seja transparente, naturalizado pela repetição; que não cause mais qualquer consternação nas demais pessoas. E é preciso que ninguém enxergue que isso é parte de uma tecnologia maior de controle para a qual convém que as coisas sejam assim, convém manter essas pessoas como não cidadão, já que já não podem mais afirmá-las como não humanos.

Afinal, “ninguém consegue dar jeito na polícia, eles são incontroláveis”. Ainda que essa estrutura racializada não tenha sido arquitetada como um plano maquiavélico em uma dessas teorias da conspiração. São apenas papéis sociais representados diariamente. Convenientes para uns, dolorosos para outros, cuidadosamente estimulados e sustentados por quem precisa e pode manter as coisas como são.

A presença invisível

As elites que movem montanhas, tiram e botam presidentes, têm poder para manter sob controle as instituições necessárias à manutenção do seu poder. E uma dessas instituições é o teatro! É necessário manter essa ilusão de que somos um povo incompetente, de que somos todos uma raça inferior – coisa que já não se falava mais tão abertamente até pouco tempo atrás – para que eles mantenham o poder.

Conferir poder a uma casta de intermediários entre o senhor e o escravo é uma ferramenta, não é mero acaso. E se tem uma coisa mais invisível do que a dor dos não cidadãos, é a presença de uma elite que mantém as coisas como elas são.

Esse teatro tem vários atores e mitos bem visíveis mostrando suas caras no palco. O povo arruaceiro, desordeiro, nunca suficientemente evoluído para ser civilizado; a classe média superior, afinal, quem tem não-cidadãos abaixo de si tem sempre aquele ar de superioridade; a polícia que ninguém controla, mas que “sabe a hora de cumprir seu dever”; e acima de todos, regendo o concerto do caos, ah!, a classe política.

São eles que mandam no país! Mas, oh, que pena, eles são tão corruptos e não pensam em ninguém. Só que não!

Políticos são também atores nesta encenação. Corrupção e caos político também são ferramentas que pertencem a quem está puxando as cordas atrás das cortinas, a quem realmente manda. Mas isso é tema para outro debate.

Concluindo

Racismo é estrutural. O racismo é, na verdade, a estrutura. E é isso que me incomoda. A expressão racismo estrutural é um pleonasmo, uma repetição irritante. Não existem dois tipos de racismo.

A expressão racismo estrutural devia deixar de existir. Devia virar uma palavra só. Racismestrutura ou algo assim. E racismo não é uma ofensa ou um desentendimento, como uma troca de farpas. Ou não é apenas isso. Racismo não se resume a chamar um negro de negro ou um Caiapó de índio. Isto é apenas uma farpa em uma porta de um edifício cuja estrutura se funda e se aprofunda historicamente nas sociedades pós-(neo)-coloniais.

E a prova disso é que se um indivíduo não-branco, em um desentendimento, chamar um branco de branco, essa ação é tão inócua quanto chamar uma garrafa de garrafa ou uma bola de bola.

Mesmo que ele use termos um pouco mais depreciativos a farpa ainda não espeta. É preciso que toda a estrutura seja mobilizada para que palavras virem humilhações; que cada indivíduo saiba seu lugar na estrutura de poder em que está inserido para que a mera menção de uma cor vire um insulto. É preciso mais, é preciso saber encenar o seu papel.

E é difícil atuar dentro da estrutura racista sem cometer erros, mesmo estando bem intencionado. Temos que agir todos os dias. E é sempre muito tentador mobilizar esta estrutura, aceitar a sensação de poder que isso traz, e encenar uma vez mais um velho papel nesse teatro.

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