Quantos jogadores brasileiros já brilharam na Europa e ajudaram a construir o futebol europeu? Quantos já ganharam o prêmio de melhor do ano da FIFA? Foram 9 conquistas. Ronaldo levou a taça 3 vezes, Ronaldinho duas, Romário, Rivaldo, Kaká e Neymar uma vez cada. Com exceção de Kaká, são todos pretos ou quase pretos, como dizia Caetano. Mas pergunta a quem já morou fora do país se preconceito é só para quem tem a pele escura.
Qual é, então, a causa da reação dos espanhóis contra o Vini Jr.? O baixo rendimento nas temporadas iniciais é só uma desculpa ou o estopim, talvez. As comemorações e as danças, quem sabe? Mas eles nunca viram o Ronaldinho sambando? Eu diria que é uma conjunção de fatores. O fator histórico na cultura europeia é um deles. A ascensão recente de grupos de extrema direita é não só mais fator, mas um sintoma do anterior. E não podemos esquecer que o racismo é um regime visual onde um grupo de pessoas leva a marca da discriminação em seus corpos. Um desastre nunca acontece por causa de uma única falha.
A Europa cristã extinguiu gradualmente a escravidão ao longo da idade média. Quando começam as grandes navegações, em meados do século XV, já não havia escravos no velho continente. Mas nesta mesma época, algumas decisões do Vaticano começaram a autorizar os reis europeus a escravizar povos fora do continente, especialmente os africanos. Não vou falar muito sobre isso, esse vídeo é sobre futebol. O fato é que os papas passaram a bola para os portugueses marcarem seu golaço histórico. E isso inaugura um dos aspectos mais marcantes do racismo moderno, sua característica visual. A cultura europeia sempre foi marcada pelo racismo, é o que pensa Cedric Robinson. Ou pelo menos por um proto-racismo que vem de longe. Quando o Papa decreta seu libera-geral, nos idos de 1450, o que ele está dizendo é apenas um “aqui não”. Somos todos irmãos em Cristo aqui na Europa, mas aqueles carinhas ali, hein…
Como isso se conecta com o caso do Vini Jr? Assisti alguns jornalistas esportivos espanhóis tratando do caso e a impressão que me deu foi, primeiro, de uma total falta de consciência sobre as questões raciais que moldam a cultura das sociedades que viveram o colonialismo. Não muito diferente do Brasil, diga-se de passagem. E são jornalistas esportivos, não historiadores ou especialistas em racismo. De todo modo, minha impressão é de total inconsciência e/ou desfaçatez em relação ao caso. Vamos aos argumentos dos jornalistas. Não vou exibir suas falas aqui para não alongar o texto. “A Espanha não é racista; há racistas na Espanha”. Não sei para vocês, para mim uma frase dessas me soa muito como o “aqui não” do Papa. E a questão não é definir quantos racistas um país precisa para ser considerado um país racista. A questão aqui é o racismo que permeia a estrutura da sociedade, na cultura, na repetição de discursos e nas instituições. O Vinícius Jr. vem sofrendo ataques explícitos e repetidos, dentro e fora dos estádios, por sabe-se lá quanto tempo. E como bem lembra este mesmo jornalista, há leis na Espanha que tipificam o crime de ofensa racial. Então a questão aqui não é quantos racistas há, mas o que as pessoas e as instituições estão fazendo em relação a isso. O jornalismo esportivo e o jornalismo em geral, o Real Madrid e os demais clubes, La Liga, a FIFA, os governos locais e o governo espanhol. Que atitudes vinham tomando contra os ataques racistas? Pouca ou nenhuma. É importante lembrar que essa fala só aconteceu porque o Lula veio a público em defesa do Vinícius, denunciando em escala global as violências praticadas repetidas vezes. “Não se pode deixar, qualquer um, manchar a imagem da Espanha”, disse o jornalista. Sua fala não é um discurso antirracista, é apenas uma defesa da imagem da Espanha. Mas termina por mostrar o racismo presente nas instituições e na cultura europeias.
Uma outra linha de argumentação tentou colocar a culpa no próprio Vini. “Porque nesse momento ele é o jogador mais odiado?”, perguntaram. Porque é um “incitador de massas”, se referindo à atitude do jogador em relação à torcida e a outros jogadores que o ofendiam. Essa é antiga. A velha tática de culpar as vítimas pelas agressões que sofrem. Seja uma boa menina e não ande com essas roupas, para você não ouvir ofensas ou coisa pior; se for um bom viado e ficar quietinho em seu armário, ninguém vai te ameaçar ou agredir; se for um jogador negro bem-comportado e não insultar de volta seus agressores, talvez eles parem. Teve um que chegou a dizer que o Vini devia abandonar o campo toda vez que isso acontecesse. Se calar e abandonar o jogo não são a atitude correta e o Vini não fez e espero que não faça. O que esse tipo de argumento diz é “nós temos que suportar sua presença e ver sua imagem todos os dias, que pelo menos se ponha no seu lugar”.
Ver sua imagem todos os dias… Diz a mitologia cristã que Noé amaldiçoou seu filho Cã por ele ter visto seu pai nu. É sério, procura na Wikipédia. Muitas discussões rolaram a respeito dos motivos deste episódio no mito de Noé, mas o fato é que por muito tempo essa história foi usada como explicação para a cor da pele característica da gente africana, ou seja, os africanos seriam os filhos amaldiçoados de Cã. E, claro, como desculpa para a suposta missão salvadora das almas africanas e indígenas. Essa conversa, aliás, tem reflexos na história recente e nem tão recente do Brasil também. Confere aí no card o vídeo que eu fiz sobre o tema.
Enfim… Um escravo romano, uma vez libertado, estava livre de qualquer marca que o identificasse. Se confundia com as demais pessoas e em poucas gerações seus descendentes estariam totalmente integrados à sociedade. Mas, o que aconteceu depois que os Papas liberaram os reis para “catequisarem” os povos de outros continentes foi mais do que a reabilitação da cultura escravagista na Europa. Representa também identificação visual de um grupo de pessoas como escravisável. Essa decisão direcionou o sentimento racista para este grupo identificado como não-europeu e exportou este sentimento para lugares que estavam longe das terras europeias. Isso pode causar a falsa sensação de que não há racismo na Europa, quando, na verdade, o que temos é o deslocamento do alvo deste sentimento. O fato é que o racismo é um fenômeno visual e quanto mais intenso é o tom de pele, maiores as reações.
E, claro, o libera-geral do papa reinstaura também as abusivas vantagens financeiras que tal sistema garante a um dos lados. E esse é, talvez, o ponto mais importante, a acumulação de poder e riquezas mediante a exploração do corpo do outro. Poder que leva a acumulação, que leva a mais poder e a mais acumulação… Essa é a verdadeira natureza missão salvadora de almas que permitiu a ascensão europeia no século XV. Racismo é um sentimento, atua na instância emocional, mas é também, na esfera racional, uma relação de poder. É o desejo de tirar proveito, subjugar ou mesmo eliminar um grupo. E é aqui que entra o fator ascensão da extrema direita na jogada.
Existe uma diferença entre sentimento racista e discurso racista. Os dois andam sempre juntos, mas o discurso racista pode, muitas vezes, ser repetido no piloto automático, já que estamos todos inseridos neste universo de crenças, falas e atitudes naturalizadas que muitas vezes passam desapercebidas. Não quero passar panos quentes para racistas, mas também não estou na condição de julgar as pessoas. Cada um que avalie os sentimentos que cultiva e as ideias que repete.