Onde realmente está o racismo: a verdade que seu tio não vai te contar no Zap da família

Pesquisas recentes mostram que o Brasil começa a se enxergar como um país racista, mas ainda tem dificuldade de identificar ações de racismo. Por outro lado, as recentes notícias sobre a polícia baiana e a operação vingança no Guarujá gritam na cara de todos como e onde identificar o racismo.

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Uma polícia que age por vingança já é por si só uma política medieval. Mas a questão aqui remonta a um passado bem mais recente. Um passado onde um determinado grupo de brasileiros estava disponível para serem torturados e assassinados. A verdade, é que esse passado nunca foi superado. Ao contrário, continua sendo cultivado e mantido. Quer saber como? Me acompanha…

Tem uma cena de Memórias Póstumas, do bom e velho Machado de Assis, que me impressionou muito quando li pela primeira vez, ainda adolescente. No capítulo LXVIII, O Vergalho, Cubas caminhava pelas proximidades do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, quando é interrompido em seus pensamentos pelo burburinho de uma aglomeração. Ao se aproximar, constata: “era um preto que vergalhava outro na praça”.  A cena da ficção de Machado representa o mesmo tipo de práticas fundadoras da estrutura social no Brasil revelada em diversas pinturas do século XIX. Uma delas, uma aquarela de 1822 do pintor australiano Augustus Earle, encena mais um episódio de punição por meio de tortura pública, sob o olhar do senhor. O braço erguido, o chicote voando em direção ao corpo nu e ferido da vítima, o feitor acompanhando de perto a ação.

Pintura de Augustus Earle, Calabouço do Morro do Castelo, Rio de Janeiro. Um homem negro chicoteando outro, feitor observando, pessoas em redor.

Um problema contemporâneo

É lugar comum repetir, como tantas outras frases dessas que as pessoas repetem sem pensar, que também existe racismo entre os negros ou que os negros é que são racistas. Existe verdade nessa colocação? É possível. Mas tem uma questão de linguagem aí. A expressão “é que”. Dependendo do contexto, serve para excluir elementos de um determinado grupo. “Futebol é que é divertido” significa que alguém não gosta tanto de outros esportes. “Nós é que somos patriotas” significa que alguém acha que determinados grupos não deveriam fazer parte da nação. E o que isso tem a ver com a pintura e o livro citados? Saiu uma pesquisa recentemente sobre a percepção das pessoas a respeito do racismo no Brasil. O que impressiona sobre essa pesquisa é uma estranha contradição. Enquanto 81% das pessoas concordam que o Brasil é um país racista, apenas 11% identificam racismo em suas próprias atitudes ou em suas famílias. Quer dizer, 89% das pessoas não enxergam onde e de que formas o racismo se manifesta. Seja por desconhecimento ou por maldade – não sou eu que vou julgar, afinal 89% é muita gente – parece que as pessoas já não veem o Brasil como um país livre de racismo, mas ainda não sabem como identificá-lo.

Se era possível ter alguma dúvida de que o racismo é um problema atual, os últimos anos deixaram as coisas bem claras. O crescimento da extrema direita pelo mundo fez muita gente perder qualquer resquício de vergonha ou medo de expressar sentimentos racistas. O lado bom é que aquela hipocrisia de chamar de brincadeirinha, gozação, camaradagem o que na verdade é agressão, ofensa e exclusão racial tem ficado cada vez mais evidente. Por outro lado, muitas pessoas de fato não sabem exatamente como e onde o racismo se manifesta. Como aquelas práticas tão antigas retratadas no livro e na pintura ainda hoje moldam atitudes, palavras e pensamentos. E onde, muito além da relação interpessoal, podemos encontrá-las. Nesta série de vídeos vamos descobrir onde encontrar o racismo com exemplos práticos para ficar bem claro como se manifesta essa cultura que só traz prejuízos. Principalmente para os grupos que são suas vítimas, mas não apenas para eles, para o país como um todo que sofre também as consequências de manter sua população à margem da cidadania e de se manter à margem do mundo.

Um sistema que se diz neutro

Casa Grande com estruturas à mostra.

É comum as pessoas pensarem sobre o racismo como um desentendimento entre as pessoas. Ou como uma ofensa, um xingamento pessoal. Em muitos casos são pessoas que sequer têm uma relação de autoridade ou de poder tão discrepante, como na pintura. São “gente como a gente”, como se diz. Outras vezes é um personagem de televisão que faz uma gozação, coisa muito comum até poucos anos atrás. Alguns casos mais recentes envolvem torcedores insultando jogadores negros. Fiz um vídeo sobre o Vini Jr, depois confere na página inicial. Eles têm razão em pensar dessa forma, a ofensa pessoal é uma forma de manifestação e as relações interpessoais são um meio importante onde se expressam sentimentos racistas. Tanto é, que o mimimi da década sobre isso é a rejeição a tudo que cheire a politicamente correto.

Mas a coisa vai muito além do âmbito pessoal. Atos de agressão são tolerados porque são compreendidos pelas pessoas não apenas como incidentes interpessoais, mas aleatórios e arbitrários, sem maiores consequências. Como um pequeno desvio de conduta dentro de um sistema supostamente justo e neutro. A sociedade moderna é construída por leis que garantem a igualdade entre as pessoas, mas – infelizmente – acima da lei existe o poder. Isso não é novidade para ninguém e como dizem nossos hermanos: “A justiça é como a serpente, só morde os descalços”. E é justamente a dificuldade de enxergar conexão histórica entre fatos aparentemente ao acaso que constrói a ideia de que não existe essa conexão. Da mesma forma, a dificuldade de ver as vigas e pilares por trás do reboco e do acabamento faz parecer que está na superfície o que, na verdade, é estrutura, tem lastro no passado e forte sustentação no presente. Mas se a gente tenta enxergar por trás do acabamento de igualdade, vamos ver que a suposta neutralidade é um mito e que o sistema que deveria ser justo – e é muitas vezes justo no papel – na prática seleciona pessoas e as separa entre cidadão e não-cidadão de acordo com os mesmos critérios do passado.

O intermediário do poder

Depois de constatar que o homem que torturava outro homem em praça pública era um de seus ex-escravos, Cubas ensaia uma explicação: “Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-as a outro”. É possível. Por vingança ou por encontrar alguém colocado em situação de maior vulnerabilidade que a sua. Um ato isolado, sem conexões que vão além do ressentimento íntimo de um indivíduo. Porém, ser libertado pelo senhor o coloca em uma situação de poder, embora ainda dentro do sistema criado pelo senhor. Uma relação de poder que convém ao senhor.

Brás Cubas e Prudêncio, personagens de Machado de Assis em estilo quadrinhos.

Gilberto Freyre, racista de carteirinha, achava que o mulato era a prova do amor entre as raças que ele jurava que existe no Brasil. Freyre é o maior responsável pela difusão do mito da democracia racial brasileira. A falsa ideia, repetida até hoje, de que um país desigual como o Brasil, cujas desigualdades são facilmente visualizadas de acordo com o tom da pele, é um país racialmente justo. Para ele, o mestiço é o elemento que dá equilíbrio a essa sociedade justa e igualitária, a engrenagem responsável por balancear e suavizar o antagonismo racial. E é mesmo, mas não do jeito que ele queria. Não como uma relação de amor fraterno. Conceder poder a intermediários é uma forma de se manter no poder.

A pintura retrata uma cena que se passa no Calabouço do Castelo, prisão que existia no forte do antigo Morro do Castelo, no Rio de Janeiro. O Morro do Castelo abrigava as primeiras edificações portuguesas construídas no Rio de Janeiro ainda em mil quinhentos e tal, os mais importantes eram um convento e uma fortificação que ficou conhecido como Castelo e deu nome ao lugar. Além de muitos outros lugares históricos, como a casa onde viveu Machado de Assis, e de uma densa população majoritariamente formada por negros e pardos, o que era comum no Centro do Rio até então. O Morro do Castelo e toda a sua história existiram até o início do século 20, quando foi demolido pelo prefeito Pereira Passos no projeto higienizador que deu origem às primeiras favelas. Mas peraí, o que foi demolido? O convento, o forte, a casa de Machado de Assis? Não, o morro inteiro foi varrido a jato d’água e virou aterro.

Que força tão imensa faz a elite de uma população mover as montanhas de uma cidade e enterrá-la com todos os escombros de sua história? E aí, juntando as ideias de intermediários do poder e montanhas, me ocorre um outro lugar comum: “a polícia brasileira é incorrigível, é impossível, ninguém consegue consertar”. Os grupos detentores de poder, quando interessa, são capazes de mover montanhas e soterrá-las com todas as suas conexões históricas. Se não o fazem é porque têm interesse em manter a estrutura por eles construída como está. A cena se passa no Castelo e a relação que se impõe entre esses dois homens e entre eles e o poder representado pelo feitor, muito bem capturada na troca de olhares entre eles, se perpetua até hoje. O poder, o escravo e o intermediário. E seria ingenuidade – ou seria conveniente? – acreditar que sua repetição contínua no passado teve natureza racial, mas hoje não passa de acaso, coincidência, arbitrariedade. Relações de poder não são obras do acaso.

O sistema de castas virtuais

O fim do regime escravocrata marca também o fim, mais uma vez na forma da lei, do sistema de castas no Brasil. Um sistema de castas é aquele em que as pessoas não têm mobilidade social. Se um indivíduo pertence a uma casta, vai estar condenado a desempenhar as atividades que são permitidas – ou obrigatórias – para a sua casta. Não têm o direito de escolher seus próprios destinos, sua profissão, suas atividades. Seus descendentes estão condenados a esta mesma prisão.

O Apartheid na África do Sul e as leis Jim Crow nos Estados Unidos foram formas explícitas de tentar manter este sistema após o fim da escravidão. Mas não foram as únicas e, para falar a verdade, não foi uma estratégia muito boa, em pleno século XX, separar as pessoas com base na lei. Muito mais eficiente foi, e continua sendo, a estratégia adotada pelas elites econômicas brasileiras que vêm garantindo imobilidade social às massas por meio de desigualdade cultural, econômica e de acesso aos meios e recursos que possibilitariam sua ascensão. “Ah, mas isso é só uma questão de esforço individual”.

Esses grupos sofreram e ainda sofrem com a escravidão, migração forçada, dizimação, negação de acesso a recursos básicos tanto materiais quanto imateriais, marginalização geográfica e social entre muitas outras violências. Em contrapartida, os imigrantes que vieram para o Brasil sob o pretexto de substituir o trabalho negro – o que por si só já um absurdo – tiveram preferência nos postos de trabalho, acesso à educação, acesso a laços sociais na classe média que permitem abrir portas, enfim… Mais uma vez, se coloca na lei a suposta igualdade, mas, na prática, o que as elites econômicas fazem é garantir direitos e privilégios a grupos selecionados pelos mesmos critérios do tempo da escravidão. Além de garantir que qualquer tentativa de sair dessa condição de casta velada seja devidamente reprimida.

Imagens de violência racial do passado e do presente.

A minha pergunta para os 89% que não enxergam o racismo é: que explicação elas dão para esse fenômeno? Se não são as desigualdades causadas e sustentadas pelas elites econômicas e seus intermediários, qual é a sua explicação para o fato de a grande maioria das pessoas marginalizadas em castas não oficiais brasileiras serem descendentes de africanos e indígenas? Eles são incapazes, inferiores?

A morte no horizonte

Se a gente traz de volta a imagem do Calabouço – o escravo, o intermediário e o poder – como um paradigma de sociedade, mas agora em termos de mobilidade social, em termos da manutenção do desejo das elites econômicas de manter grupos inteiros presos em castas virtuais, quem seria o atual intermediário do poder? A classe política, talvez. Pode parecer que eles são o poder em si, e muitas vezes são mesmo, mas em sua grande maioria não passam de intermediários dos verdadeiros acumuladores de poder econômico que são gente muito mais rica e poderosa. Mas é também o cidadão comum que vota e revota nos mesmos representantes desta elite – e isso não é um fenômeno recente, é muito anterior ao bolsonarismo. Não importa a cor da pele, ser autorizado a exercer poder por quem de fato detém poder é sedutor. Mas quando se trata dos objetivos por trás desse esquema, aí sim pele é essencial…

Ver a classe política como intermediários do poder pode ser problemático. O coitado que ganha um chicote para açoitar seu irmão é parte da mesma ralé que ele castiga, já os políticos, não. A polícia, por outro lado, sim, é parte dessa ralé. E fica bem clara essa relação quando se pensa na polícia nesta posição e nas muitas chacinas cometidas no Brasil, outro problema enfrentado pela gente pobre – quase todos pretos ou quase pretos. A morte está sempre muito mais próxima e muito mais presente nas vidas dessas pessoas do que para os verdadeiros cidadãos. Basta ver as estatísticas de encarceramento e morte no Brasil. Vão dizer que eles vão mais para a cadeia porque cometem mais crimes. Mas aí eu volto à pergunta anterior, se cometem mais crimes é porque vivem à margem da sociedade, sem os direitos e vantagens dos efetivamente cidadãos, situação que é construída e sustentada pelas elites econômicas. Se não é por isso, qual é a explicação para a maior criminalidade, encarceramento e morte entre os negros? Se tiverem alguma resposta que não envolva a falsa relação de superioridade e inferioridade entre as pessoas me avisem.

Montagem em que o feitor do quadro de Earle veste um terno moderno e o carrasco usa uniforme da PM.

O racismo é um sentimento e opera no íntimo de cada pessoa. Mas é também uma ferramenta de manipulação. Se vem sendo estimulado ao longo dos séculos é por seu potencial na manutenção das estruturas de poder. As elites que movem montanhas, tiram e botam presidentes, têm poder para manter sob controle as instituições necessárias à manutenção do seu poder e uma dessas instituições é o teatro. É necessário manter essa ilusão de que somos um povo incompetente, de que somos todos uma raça inferior – coisa que já não se falava mais tão abertamente até pouco tempo atrás – para que eles se mantenham no poder. Conferir poder a uma casta de intermediários entre o senhor e o escravo é uma ferramenta, não é mero acaso. Mas não é o único elemento neste cenário.  É necessário manter a ilusão do teatro, o mito da democracia racial em que todos são iguais e se não estão em uma situação melhor isso é fruto apenas de suas próprias ações. E isso é só o começo, fica ligado nos próximos vídeos para descobrir a verdade sobre o racismo no Brasil.

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Café com Canela: Morte e vida no Recôncavo Baiano

Quer ver um filme nacional bem maneiro, provocativo e ao mesmo tempo gostoso de assistir? E ainda por cima feito por jovens, cineastas baianos muito atentos ao que são a Bahia e o Brasil de hoje? Fica ligado, acompanha até o fim, mas se quiser, assiste esse texto no YouTube.

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A Bahia talvez seja o lugar mais decantado em prosa do Brasil. Nenhuma estatística, só minha impressão, mesmo. E estou falando só de prosa, se for incluir versos, sons e imagens, nem se fala. O baianês de novela é uma instituição nacional e devia ser tombado pelo Iphan. Mas baianês de novela é um sotaque proveniente de uma região imaginária da Bahia. A produção audiovisual local vem construindo seu próprio sotaque desde há muito, e especialmente no século XXI. A Bahia folclórica e turística de Jorge Amado, focada no pitoresco e no contraste entre o supostamente moderno e o supostamente primitivo, dispensa apresentação. O Jorge Amado sempre esteve junto do povo que ele amou, mas a visão sobre racismo no Brasil daquela época ainda era muito limitada pela crença em uma suposta igualdade que nunca existiu. O grande feito de Café com Canela é abrir novos espaços e criar novas imagens sobre a Bahia que vão além dessa visão da baiana quituteira do traje típico, por exemplo. Isso não significa fechar os antigos espaços, claro. O exagero, o pitoresco e a fantasia dão lugar a uma Bahia enfocada por uma mulher negra e um homem LGBT e mostrada de dentro para fora. Despida da fantasia de baiana, Café com Canela, lançado em 2017, foca no dia a dia de pessoas comuns falando sobre elas mesmas e sobre seus próprios problemas.

Filme bom de assistir, dirigido por Glenda Nicácio e Ary Rosa e ganhador dos prêmios de Melhor Atriz, Melhor Roteiro e Melhor Filme no Festival de Brasília de 2017, o drama gira em torno das histórias de Margarida e Violeta. Não se preocupem, não vou estragar o filme para vocês. E da forma como a solidariedade entre elas constrói o caminho para a cura do sofrimento comum a essas mulheres. Depois de perder o filho, Margarida entra em um processo de melancolia e se isola por anos em sua casa, terminando por perder também seu marido. Do outro lado, vemos Violeta em sua luta diária. Casada e cuidando dos filhos e da avó idosa, com sua bicicleta vai de porta em porta vendendo quitutes a bares e restaurantes locais para ganhar a vida. Em suas viagens pelas redondezas termina por encontrar Margarida. O Recôncavo Baiano de Café com Canela é um retrato da intimidade da gente da região, especialmente Cachoeira e São Félix, pintado por artistas locais. Muito mais do que uma cena pitoresca para turista ver ou para o consumo nas regiões Sul e Sudeste. A cultura do Recôncavo é enquadrada mais do ponto de vista do relacionamento entre as pessoas do que de outros aspectos, igualmente importantes, mas que acabaram construindo uma imagem engessada e de traços exagerados da Bahia. Não se trata de abandonar a cultura. O samba de roda está presente, o Candomblé também. É o ponto de vista. É a diferença entre falar sobre o outro e falar sobre si mesmo. E as nuances que essa mudança de perspectiva acrescenta à imagem da Bahia.

Duas festas marcam o início do filme e dão o tom do que esperar dele. Primeiro, imagens amadoras de festa de aniversário gravadas pelo pai da criança. Família reunida em torno do aniversariante, amigos e parentes vêm comemorar juntos. Depois, churrasco entre amigos, cervejinha e papo. Mas estamos falando de um drama e o drama de Margarida, que é também drama de muitas brasileiras e brasileiros, custou a ela muitos anos de vida e a Violeta, muito esforço. Todas as estatísticas apontam e todo mundo sabe ou deveria saber que no Brasil, pretos e pardos são mais vulneráveis e morrem com mais frequência que brancos. Não só por homicídio, mas por doença também. A pandemia foi o exemplo mais gritante disso. Deixa aí nos comentários o que você acha disso. A morte é a única certeza da vida, como dizem, mas se mostra sempre muito mais próxima e ameaçadora no horizonte de uma parte da população que de outra. E a morte não tem time de futebol, chega para todo mundo. Se existe uma diferença estatística entre dois grupos, isso acontece pela ação do homem. A causa da morte do menino Paulinho não é informada. E não importa. Poderia ser qualquer uma das causas mais comuns ou das mais raras de morte. O que importa é que esse evento único para Margarida une seu sofrimento ao de milhares de mulheres e seus filhos vulneráveis. Mas, como eu disse, o filme é sobre encontros e reencontros que a vida oferece. Não é à toa que começa e termina em festa. Nem é mera coincidência. As histórias de Margarida e Violeta se fundem por meio da solidariedade. União representada e celebrada com as festas.

No Brasil Colônia e no Brasil Império era muito comum estimular a separação de famílias e a vida de solteiro. Sim, um antigo hábito dos cidadãos de bem dessa época era mandar pais para uma fazenda, mães para outra e filhos para outra. Não os membros das famílias deles, claro. E a troco de quê? Dinheiro, claro. Como herança, hoje as famílias mais pobres e de pele mais escura tendem mais à desagregação. Café com Canela não é sobre as tristezas da vida, ainda que esteja atento a elas. Tem que ficar ligado, se não você se fode. Mas sim sobre as possibilidades que a vida oferece. Possibilidades de construção e reconstrução. Se a família de Margarida se esfacelou completamente, a de Violeta, ao contrário, se mostra como um grupo unido e feliz. Eles também estão lidando com a morte, mas de uma forma diferente. D. Roquelina, avó de Violeta está doente de cama. Violeta e seu marido se revezam nos cuidados com a anciã que vive uma velhice senil, mas em paz, cercada de pessoas amadas, fechando e reiniciando o ciclo das gerações como deve ser. Horizonte da morte e ciclo da vida. Fragmentação e articulação familiar. Paulinho e D. Roquelina. A morte de Paulinho é a morte de milhares de jovens negros e a fragmentação de Margarida é a fragmentação de milhões de famílias ao longo da história. Não se trata de deixar o passado para trás e seguir em frente. O passado sempre volta, ainda que muitos o neguem. As estatísticas de morte e desagregação familiar são o passado assombrando o presente. Trata-se, ao contrário, de fazer as conexões necessárias, entre as pessoas, as coisas e os fatos.

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