Memorial do Presente

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Poucos dias atrás o Brasil viu um ex-presidente que atentou contra a democracia ser punido com inelegibilidade por um de seus crimes. A repercussão foi gigantesca. Foram muitos os atentados contra a verdade, contra a humanidade, contra o erário, contra a democracia. Esse é o primeiro de muitos processos que podem e devem ser abertos contra o Bolsonaro. E, de fato, esse é um evento de importância única para o Brasil. Não apenas do ponto de vista legal, mas principalmente em termos simbólicos como marco no fortalecimento da democracia no nosso país. É nesse clima que resolvi fazer um pequeno memorial para relembrar o passado conectando-o com o presente. Vou mirar 3 aspectos em paralelo entre o 64 e o passado recente do Brasil.

Faz poucos dias também que vi uma notícia interessante, mais uma vez no ICL. Tem tudo a ver com o que estamos passando hoje, mas aconteceu num país vizinho.

Quatro médicos deram à luz a Gêmeos de uma presa política durante a ditadura militar Argentina. A mãe foi assassinada pela ditadura, os médicos renomearam as crianças e deram elas ilegalmente em adoção. Esses médicos, Edu, foram condenados na Argentina e mesmo já idosos cumprirão pena em regime fechado. A Argentina até hoje ela caça ela vai atrás de militares criminosos assassinos torturadores.

ICL

A Argentina tem passado por diversos problemas econômicos, mas, rivalidades à parte, nesse quesito eles estão muito à frente do Brasil. O esforço em não apenas colocar na cadeia as pessoas que atentaram contra a democracia, mas também o esforço e energia investidos pelo Estado em produzir memória social sobre o que foi a ditadura é essencial para banir de vez o desejo antidemocrático na sociedade. Por aqui, ao contrário, até o ano passado ainda se comemorava uma suposta “revolução de 64” nos quartéis. Ainda se vê, dentro e fora da caserna, pessoas defendendo a tese estapafúrdia de que o golpe militar de 1964 nos livrou da ameaça do comunismo no Brasil. [Card]. Aliás, teorias estrambólicas são a especialidade da casa, confere aí no card acima. Ainda se vê gente repetindo a mentira de que as Forças Armadas são um poder regulador, artigo 142 (da constituição federal) e tal… E, na verdade, o grande erro do Estado brasileiro nesse contexto foi a concessão de anistia aos selvagens que tomaram a máquina estatal para praticar crimes contra seus cidadãos no passado. Conceder anistia a Bolsonaro seria ainda pior por se a repetição de velhos erros e porque seria a prova de que realmente nada se aprendeu com os erros do passado.

Mencionei 3 fatores. Atentados contra a democracia alimentados por (e causadores de) crimes de ódio, mas que têm um objetivo oculto. O primeiro, ontem como hoje, busca atiçar as massas por meio da criação e repetição de teorias conspiratórias que levam a um estado constante de paranoia. O segundo está enraizado na cultura brasileira, parente próxima de velhas e conhecidas práticas de um país que insiste em ver parcelas de seus próprios cidadãos como inimigos. Já o terceiro é o objetivo principal e verdadeiro…

Se José acusa Antônio de ameaçar sua família, cabe a José provar que isso é verdade. “Ah, mas José, sua esposa e filhos podem estar correndo risco, temos que prender Antônio.” Não, José tem que apresentar provas de sua alegação sob o risco de destruir a família de Antônio. O Bolsonaro convocou embaixadores de sei lá quantos países e usou meios oficiais para desacreditar o sistema eleitoral brasileiro. Uma ação dessa magnitude mobilizou o mundo inteiro em torno do ex-presidente. Era a chance dele de provar e mostrar para todo mundo a ameaça que o Brasil estava sofrendo. Mas e se José estiver mentindo? Nenhuma evidência foi apresentada. O tal ataque hacker é notícia falsa, tudo orquestrado para gerar uma falsa sensação de insegurança. Os mesmos embaixadores chamaram a reunião de “ato de campanha” e disseram que a impressão de segurança do sistema eleitoral brasileiro não mudou. “Estamos correndo risco! É uma emergência!” É esse o sinal que esse tipo de ação passa para as pessoas. Se não reelegermos o presidente, vamos virar um país comunista.

A década de 60 foi o auge da Guerra Fria e também o palco do retorno da “ameaça”. Sim, a Ameaça Comunista é velha. E sim, é uma teoria da conspiração e deve ser chamada pelo seu nome e tratada como tal. Como apontam muitos especialistas, pesquisadores e historiadores, nunca houve no Brasil uma real possibilidade de sucesso de uma revolução comunista. Chega a ser patético. Quando foi que qualquer grupo de esquerda no Brasil teve dinheiro e armas para encarar uma guerra civil. As alas mais radicais de esquerda no Brasil sempre tiveram adesão baixa, predominando de forma abrangente as vertentes democráticas de esquerda. Inclusive e principalmente na atualidade. O principal partido de esquerda desde a década de 1980, é declaradamente democrata. Afirmação reforçada pelas centenas de governos locais e estaduais e pelos 13 anos que o PT esteve no Planalto.

Mas a ameaça comunista não surgiu na década de 60. Foi pano de fundo para muitos golpes e tentativas de golpe na história recente. Apesar de a Intentona Comunista de Prestes, na década de 30, ser a única tentativa real de revolta comunista, nunca chegou perto de ser uma ameaça real e foi neutralizada facilmente. Depois veio o famoso Plano Cohen, na segunda Era Vargas. Considerado uma das maiores falsificações da história do Brasil, a tramoia foi inventada descaradamente por membros das forças armadas e replicado por todos os jornais da época. A mesma teoria conspiratória foi usada durante várias crises e tentativas de golpe, dentre elas nas quedas do próprio Getúlio Vargas em 45 e 54, nas crises de 54/55, na tentativa de golpe de 61 e em 64. Não podia ser diferente com o Bolsonaro. Na versão atual, o comunismo internacional hackeou as urnas e se o nosso messias não for reeleito e salvar o Brasil, o que será de nós?

Toda teoria da conspiração tem uma característica essencial: elas são irrefutáveis. Na verdade, supostamente irrefutáveis. Se eu afirmo que vi o ET Bilu no meu quintal, quem vai provar que eu não vi? É impossível apresentar provas de que algo não existe ou não aconteceu. Ontem eu vi o Saci conversando com a Cuca na minha cozinha enquanto ela mexia seu caldeirão. Prova que eu não vi. Por isso a responsabilidade é de José, Antônio não pode ser preso por causa do ET Bilu, da Cuca e do Saci, do Senhor Cohen ou de qualquer teoria conspiratória. Essa é a razão da resposta dos embaixadores: ato de campanha que não muda a impressão de segurança. E essas teorias têm também um objetivo. Causar comoção e criar um ambiente de nós contra eles. Inventar inimigos para deixar as pessoas com medo e levar a uma reação coletiva, o chamado efeito de manada. Quando um grupo de animais está em perigo, eles tendem a se movimentar em bandos. O humano não é diferente. E instaurar um clima de ódio que divide as pessoas e abre caminho para a realização de seus planos: “o que queremos é apenas segurança, estou sendo atacado, estamos sendo atacados e eles não aceitam a intervenção militar”. Se a repetição de uma mentira tem o poder de fazê-la parecer verdade, é preciso constantemente produzir memória de fatos sobre o que fizeram as ditaduras no Brasil.

Eu sou favorável, na CPI, no caso do Chico Lopes, que tivesse um pau de arara lá, ele merecia isso, pau de arara, funciona. Eu sou favorável à tortura, tu sabe disso, e o povo é favorável a isso também. E só vai mudar, infelizmente, quando nós partimos para uma guerra civil aqui dentro e fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil, começando com FHC. Vamos deixar para fora, não, matando, se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre alguns inocentes. Pela memória do Coronel Carlos Alberto brilhante.

Bolsonaro em diferentes falas.

O ódio a parcelas da população brasileira é um padrão de comportamento e um sentimento muito mais abrangente. Se replica, se repete, se institucionaliza e se instala na estrutura da sociedade há séculos. E os termos instituição e estrutura não foram usados por acaso. Ter uma parcela da população para odiar e chamar de inimigo remete à cultura escravocrata, práticas e sentimentos que se replicam, transbordam para outras áreas. E é curioso como os discursos se repetem. Desde o final do século XIX, mas principalmente no início do século XX com Gilberto Freyre, começa a ganhar força a narrativa de que no Brasil a escravidão foi mais branda que em outros lugares e que o racismo é menos intenso ou mesmo que não existe. Algo semelhante acontece no nosso caso aqui também. “A ditadura não foi tão má assim”, “no tempo da ditadura é que era bom”. Foram mais de 20 mil pessoas torturadas, segundo a Comissão da Verdade. 20 mil cidadãos torturados em razão de uma teoria conspiratória. Selvagens incivilizados que têm por hábito torturar pessoas para conseguir vantagens e alcançar objetivos verdadeiros. Bárbaros que pretendem eliminar parte da população caso não ajam conforme seus princípios tortos. E com que objetivos?

Muita gente acha que somos nós, os que lutam contra essas práticas medievais, que incitamos o racismo, o sexismo, a violência. Deixa quieto porque racismo é 1%, quanto mais se toca no assunto, mais o problema aumenta, dizem eles. Por outro lado, todos nós vimos um deputado federal, representante do povo que veio a se tornar chefe do executivo, defendendo genocídio, tortura e estupro em rede nacional e as instituições que deveriam coibir este tipo de declaração nada fizeram. No âmbito da sociedade, as pessoas repetiam que ele era só um brincalhão, que não era sério. Práticas que têm se repetido ao longo da história, que seguem acontecendo todos os dias nas favelas e nas delegacias, que vêm à tona de tempos em tempos na forma de tentativas de tomada de poder absoluto e que são defendidas abertamente por membros da assembleia legislativa e de outros poderes não são teoria da conspiração e sim, têm que ser discutidas. Expurgar as instituições desse tipo de discurso e prática é tão essencial quanto conectar suas versões atuais com suas origens no passado e construir memória social sobre elas. Não apenas as práticas, mas também seus objetivos finais. E aí entra o terceiro fator.

Como expurgar as instituições desse tipo de prática? A corrupção é uma ferramenta de controle e poder. O político faz a sua pequena fortuna (sim, pequena, políticos em geral não são os donos do poder), mas em troca ele tem ordens a cumprir na manutenção da estrutura de poder. Por isso o Bolsonaro fez tantos inimigos e terminou mal. Ele quis virar o imperador do Brasil. Fiz um vídeo que fala sobre isso. E olha que coincidência, a prática de tortura é também uma ferramenta de poder e controle. Como se pode branquear a imagem da classe política e purificar suas instituições? Todo mundo quer ter uma vida boa, quer se sentir bem. Por que o padrão de comportamento de busca do bem-estar se confunde com a destruição do bem-estar, do corpo, da vida de outras pessoas? De onde vem esse padrão repetido em vários momentos históricos de produzir inimigos internos, grupos disponíveis para serem torturados ou eliminados e de buscar satisfação denegrindo e aviltando determinados grupos?

Os atos do passado produzem memória coletiva. Hábitos das gerações anteriores se replicam e se adaptam a novos contextos. Por isso é preciso produzir memória para criar novos hábitos. Reconhecer e punir práticas de abuso e acumulação de poder e produzir memória. Saiu um filme ano passado sobre a condenação de ditadores argentinos. Se chama “Argentina, 1985”, tem na Amazon. Excelente oportunidade para ver como sim é possível colocar essa gente atrás das grades. Um desses aí morreu não tem muito tempo sentado na privada da sua cela. A inelegibilidade de Bolsonaro é um pequeno passo de um caminho que pode levar a um futuro diferente do que temos visto ao longo da nossa história.

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Duas ou três coisas que você não sabia sobre o triplex do Guarujá, o Museu Nacional e a senzala

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Como é que se faz pra transformar uma nação gigante e promissora em um pária mundial e quais são as motivações para isso? E mais, quem orquestra e executa um plano desses, se é que existe um conspirador por trás disso tudo? Desde quando esse tipo de coisa vem acontecendo? Pode até parecer teoria da conspiração, mas não é. Ver a história se repetindo ao longo de tantos anos é, na verdade, sinal de que os motivos que fizeram as pessoas agirem no passado seguem influenciando decisões no presente.

Desde as passeatas de 2013 o país tem vivido momentos de turbulência. Parece que as pessoas perderam a capacidade e o interesse de se ouvirem. O impeachment da Dilma, o projeto político chamado Lava Jato seguido das revelações da Vaza Jato, o caos que foi o governo Temer com a suspensão de direitos trabalhistas, cortes no investimento público e seus 80% de rejeição. Depois, o os Bolsonaro no poder, a pandemia, o 8 de janeiro, o genocídio cruel dos ianomâmi e agora todos os escândalos com joias, cartão de vacinação, minuta do golpe e o envolvimento de militares em todos os casos.

Não demorou muito para se chegar aos 51 imóveis comprados em dinheiro vivo e às mansões da família Cid. Em comparação, mesmo com a ajuda do FBI, mesmo com o juiz parcial Moro planejando sentenças com o advogado e ex-deputado cassado Dallagnol, nada foi encontrado contra a pessoa que eles tanto perseguiram. Tentaram usar os erros do PT contra eles mesmos. E mais, tentaram colocar erros dos outros na conta dele. E tudo que conseguiram foi o triplex do Guarujá, e o sítio de Atibaia que devem estar em nome de alguém, além de um powerpoint cheio de convicções e nenhuma prova.

Apesar dos erros, as políticas sociais que atendiam a sociedade em diversos níveis – fome zero, bolsa família, primeiro emprego, combate à escravidão, aumento real do salário-mínimo, transposição do São Francisco, Minha Casa Minha Vida, ProUni… A lista é longa. No longo prazo, caso tenham continuidade, têm o potencial de transformar a sociedade de forma abrangente e duradoura. E já estavam surtindo efeitos, domésticas na Disney, pobre nos aeroportos… Os (entre aspas) apressados alegam que não viram nada disso acontecer, mas as estatísticas, a ONU e as manchetes internacionais não deixam mentir. E tudo o que eles têm são notícias falsas ou manipulação de informação. Lula diz que 700 milhões morreram, foram 700 mil, tá, como se 700 mil mortes fosse aceitável. Agora o Bolsonaro diz que vai processar o Lula… Umas esquisitices sem sentido

Essa briga toda entre as pessoas, isso vem de algum lugar. Tudo o que aconteceu nos últimos anos tem um único motivo: tirar a senzala do poder. Tiraram a senzala e colocaram o capitão do mato, só que o capitão do mato tentou tomar a casa grande para ele. Que burro, dá zero pra ele! Não existe casa grande, senzala e batalhão do mato. Se você não é parte da casa grande, você é senzala. O paradigma que molda as relações de poder no Brasil só tem dois lados. Se te deram poder para se sentar na cadeira de presidente, ou para invadir morro e matar preto e pobre, ou para extorquir e vender gato-net, ou mesmo para vender as drogas que… adivinha quem produz, isso não significa que você é parte da família, otário! Você é senzala. Eu podia falar em termos de gente pobre e gente rica, ralé e bacana. Acontece que a palavra senzala exemplifica melhor para o que vou dizer. Mas o binômio casa grande senzala é tema talvez para um próximo vídeo. Deixa aí nos comentários se você quer que eu fale mais sobre esse tema.

Tirar a senzala do poder. Tirar a senzala do poder significa manter as estruturas de poder como elas têm sido desde sempre. Toda essa baboseira de combate à corrupção. Corrupção é ferramenta de controle político. Não sou contra o combate à corrupção, ao contrário. Mas eu sempre me pergunto por que os maiores interessados em manter a corrupção iriam combater a corrupção? E se são todos corruptos não estariam todos no mesmo time? Puro teatro! Significa manter o Brasil como o celeiro do mundo. Isso é muito importante. Impedir o desenvolvimento social, tecnológico e industrial do país. E significa medo de perder o poder. Mas, perder o poder para quem? É medo de virar (entre muitas aspas) um país preto ou índio. É a necessidade de provar a cada dia umas teorias estranhas de superioridade. E é aqui que que dou um salto até um outro momento delicado da história. E é aqui também que começa a ficar claro de onde vem o mal que estamos vivendo.

São episódio aparentemente desconectados. Mas uma palavra faz a ligação: medo. Em meados do século 19, um problema unia todas as Americas, o chamado “problema do negro”. O que fazer com a imensa população de escravizados e ex-escravizados que ganhavam liberdade aos poucos? Muitos países já vinham extinguindo a escravidão, outros ainda relutavam… Mas um episódio específico acendeu a preocupação dos donos do poder neste hemisfério. Entre 1791 e 1804, escravos, quilombolas e não brancos livres conseguiram o que ninguém achava que seria possível. Depois de 12 anos de batalhas contra as tropas de Napoleão, uma revolução! Conduzida por escravos auto-libertados, a insurreição contra o domínio colonial francês na ilha de São Domingos, hoje Haiti, não apenas libertou os escravos, mas formou o primeiro estado negro nas Américas. Senzala no poder? Por pouco tempo. As consequências para o pequeno e jovem país foram drásticas. Isolamento internacional, dívida escorchante com a França. Mais tarde vieram a ditadura e a ocupação pelos EUA, claro, no início do século 20. As consequências da ousadia são vividas até hoje por lá. Mas o fantasma negro do Haiti assombrou as mentes brancas aqui e em toda a América.

Essa mesma época é conhecida no Brasil por ser palco do maior número de levantes e revoltas escravas desde sempre. Em todas as partes, Salvador, Recife, São Carlos, Carrancas, MG, Cabanagem, PA, Vassouras, RJ, Balaiada, MA, Vale do Paraíba, São José do Queimado, ES, Taubaté, Pindamonhangaba e São Roque, SP, Santana do Livramento, Capivari, Encruzilhada e Herval, RS. A lista é grande também. Não podemos virar um país negro! Vem de longe essa briga.

O primeiro censo oficial brasileiro aconteceu em 1872. Éramos 10 milhões de habitantes e a importação de imigrantes europeus já ia longe nessa época. Nas suas fases iniciais, a partir de 1820, eram trazidos entre 10 e 20 mil europeus por ano. As primeiras experiências ocorreram ainda nos tempos de D. Pedro II. As cidades de Nova Friburgo e Petrópolis no Rio foram fundadas por estes imigrantes. Ainda assim, o censo de 1872 contou 62% de não brancos em comparação com 38% de brancos. O fim da escravidão foi adiado com ferocidade, o Brasil foi o último país a abolir o sistema escravagista. Mas era tão inevitável quanto as revoltas que o precederam. Já existiam duas classes de pessoas no Brasil nesta época, os imigrantes não criaram o demônio. Mas um desses grupos detinha todos os privilégios e um time quando traz reforços não é para eles jogarem com a camisa do adversário.

Neste cenário se inicia um projeto para substituir o trabalho negro. E aí vem a pergunta: por que substituir o trabalho negro? Por que substituir milhões de pessoas que já faziam e já sabiam fazer o trabalho? Por que investir tanto tempo, dinheiro e energia? É que o desejo de substituir o trabalho negro na verdade ocultava um outro desejo das elites brancas. O desejo de ser um país que o Brasil não é. E esse desejo, vem de onde? Aqui, me lembro do livro da historiadora Célia Marinho de Azevedo, publicado em 1987 e reeditado em 2004, mas infelizmente esgotado. Deve ter um PDF em algum lugar. Se chama Onda Negra, Medo Branco. A pesquisadora esmiúça a literatura e os arquivos da câmara de deputados paulista justamente neste mesmo período em busca das discussões intelectuais e no legislativo de São Paulo sobre o problema do negro, sobre as revoltas, sobre a inexorável abolição da escravidão, sobre o que fazer com a futura imensa população de ex-escravizados e sobre o patrocínio estatal para imigração e quais grupos seriam racialmente aceitáveis para serem recebidos como os novos brasileiros em substituição daqueles não-cidadãos. Tinha até uma tal Sociedade Central da Imigração (SCI). Não confundir com o CSI, que é outra história. Aliás, quer ver um vídeo sobre não-cidadania? Clica no link acima à direita.

Homens poderosos discutindo o destino da gente comum. A explicação mais popular na época era aquela velha ladainha racista. Precisamos trazer trabalhadores europeus porque o negro tem uma tendência natural à preguiça, à indolência, ao alcoolismo. Tá, mas alcoolismo é sinal de depressão e isolamento social. Indolência e vagabundagem, pff, vai trabalhar debaixo de pau para depois ver sua mulher ser estuprada sistematicamente e seu dono enriquecendo às suas custas e dizendo que isso tudo é por causa da sua inferioridade para ver se não vai te dar uma baita preguiça e uma depressão profunda também. E isso é resistência também. Resistência não se faz apenas com revoltas e levantes. Se faz no boicote diário, nos pequenos prejuízos também e em última instância tem no corpo seu local de batalha. Resistência ao trabalho, sim, ao trabalho forçado para encher a pança de vagabundo. Enfim… Qual vocês pensam que é a verdadeira explicação para todo esse esforço para substituição dessas pessoas? Por que deixá-las sem nada? Por que não integração, educação? Porque integração e educação iam realizar ontem o que não querem que seja feito hoje, quase 200 anos depois que essas discussões ocorreram. Bolsa família, fome-zero, cotas.

E que outras alternativas existiam para o problema do negro? Eliminação por genocídio? A Guerra do Paraguai e seus voluntários da pátria foi uma tentativa nesse sentido. Mas são 62%. A Alemanha antes da Segunda Guerra tinha 0,6% de judeus. Varrer o problema para debaixo do tapete? Bem, isso sim tem sido feito desde sempre. Mas… nem tudo está perdido! Alguém teve uma ideia genial! Podemos sim virar um país branco! Se trouxermos muitos europeus e eles se misturarem às populações inferiores negra e indígena, em 100 anos seremos um país totalmente branco. Parece brincadeira, mas não é. Isso foi uma política de estado brasileira. Aqui não posso deixar de recomendar um segundo texto curtinho, do qual tiro as informações a seguir, o artigo “Previsões são sempre traiçoeiras, de Lilia Schwarcz”. Em 1911 o Brasil participou de uma aberração chamada Congresso Universal das Raças, em Londres. Patrocinado pelo governo do então presidente marechal Hermes da Fonseca e apoiado “cientificamente” pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro (aquele mesmo que pegou fogo em 2018), João Baptista de Lacerda foi o homem escolhido pelo marechal para representar o Brasil. Médico formado pela Faculdade do Rio de Janeiro, Lacerda foi Ministro da Agricultura, chefe do Laboratório Experimental e posteriormente diretor do Museu Nacional. Sua missão era apresentar o audacioso plano governamental de branqueamento e eliminação das raças inferiores negra e indígena por meio, pasmem, da miscigenação. Sim, lavou tá novo. Da discussão no legislativo paulista em fins do século XIX ao golpe de 2016, passando pelo projeto de nação no início de 1911, tudo passa pelo incômodo racial. Tudo passa pela criação de teorias esquisitas para tentar dar uma explicação qualquer a algo que não passa de incapacidade de se ver como igual ao outro.

Isso tudo foi parte de um grande projeto nacional que não deixa nada a desejar a qualquer teoria da conspiração que você imaginar. E olha que temos passado por tempos muito férteis em teorias da conspiração! Encomendaram até um quadro que ficou muito famoso. Chama-se A Redenção de Cam, de Modesto Brocos. Olha como fica branquinho, a avó, a mãe e o bebê. Lavou tá novo. Eu também sou parte dessa história. A família nordestina sai de Alagoas e encontra a família italiana no Rio. Só que minha avó era cabocla.

Mas nem todo mundo acreditou nessas teorias malucas de limpeza racial. Houve quem defendesse, desde aquela época, o aproveitamento da mão-de-obra negra e mestiça. No meio loucura toda que foi o período pre-abolição, havia quem falasse o óbvio: vamos dar oportunidades, educação, trabalho às pessoas que já estão construindo esse país há séculos. Não dá para dizer que foi por falta de aviso. Foi uma escolha mesmo. Em resumo, faz de conta e medo branco que levaram mais da metade da população do país para a marginalização, estado de coisas que é cultivado até hoje. Tiro pela culatra que só poderia levar o país a um desastre social ao longo dos séculos seguintes, sustentado com todas as forças à disposição todas as vezes que a senzala ameaça as estruturas de poder vigentes. Mas isso também é um projeto (ou ainda é um projeto) vigente. E aqui não posso deixar de recomendar um outro livro, este bem mais recente, do professor Jessé Souza: A Elite do Atraso. Link na descrição. E é aí que a contradição maior acontece. Medo de quê? Medo de quem? Medo de perder o poder para quem? O golpe de 64 e o golpe de 2016, apoiados pelo governo norte americano, a destruição da indústria nacional e a manutenção do status de celeiro do mundo. As elites brasileiras parecem bem felizes sendo capacho.

Será que existe uma força oculta por trás desse mal? A versão atual do que antes chamavam de tendência natural à indolência é o nosso bom e velho isso é cultural. Vi um dos homens mais poderosos do Brasil atualmente no ICL outro dia. A notícia era sobre mais um golpe bilionário envolvendo uma empresa privada, a companhia de energia Light, depois do anterior envolvendo as Lojas Americanas e os mesmos bilionários. Vamos ouvir o que ele tem a dizer: [vídeo]. Link na descrição para quem quer ver a notícia completa.

Para mudar tem que querer. As pessoas muitas vezes precisam esconder o que realmente sentem. Tentaram provar cientificamente (entre mil aspas) que existem raças humanas superiores e inferiores. Não conseguiram, a ciência de verdade comprova que somos todos iguais. Não acreditar na capacidade do povo significa realmente “eu não acredito” ou significa “eu não quero que essas pessoas consigam”? Por trás de “o Brasil é isso aí” tem o não quero acreditar nessas pessoas. E culturas são criações humanas. De qual teoria mirabolante vocês acham que vem a ideia de que uma classe inteira de pessoas é constituída de incapazes, quando o mesmo grupo que diz está é roubando as nossas oportunidades? A história responde essa pergunta. Homens poderosos inventando teorias estrambólicas para provar para si mesmos que são superiores. Não importa que ele seja um capacho internacional, o importante é não perder o status para essa gente aí.

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